Relatório minoritário
Quando surgiram as primeiras notícias do vírus que acossava a China, ninguém ficou muito preocupado do lado de “cá". Eram coisas de “lá”, chinesices obscenas de uma cultura macabramente omnívora e incompreensível para os ocidentais luminares, amantes de uma bela caracolada, reclinados à sombra fresca de uma esplanada à beira mar no calmo lusco-fusco de uma vagarosa tarde estival. Que não haja qualquer dúvida quanto à caracolada, pois que neste momento não sei se não daria um bracinho – pode ser o esquerdo, que sou destra e a esquerda nunca me fez grande falta – para emular o que anteriormente descrevi.
E a vida continuou igual. Veio o Natal com tudo a que tem direito em luz e cor, toda a preparação, toda a azáfama, toda a gula, todo o peso a mais, que se prolongou até ao Ano Novo e para lá dos Reis, altura em que as notícias do vírus chinês já começavam a ganhar maior projecção mediática, por surgir ventilado à laia de boato, que já havia mortes, mas mesmo assim, muito longe de “cá".
Completamente tranquilizada pela alta autoridade para estes assuntos de que “não há grande probabilidade de um vírus destes chegar a Portugal" e apesar de haver já vítimas do vírus, mortes verificadas em território chinês, três dias antes da constatação dos primeiros dois casos da epidemia em França, confirmei as minhas férias de Abril… um destino que adiara sobejamente e que foi ponto assente para 2020, Croácia, Montenegro e Bósnia-Herzgovina.
No torvelinho de notícias que ora se complementavam, ora se contradiziam, a rotina do trabalho em pouco se alterou, falava-se muito de tudo e concretamente de nada, a OMS considerou chamar à nova infecção Covid-19. Foram registadas mortes pelo novo vírus fora da China. Foram registadas as primeiras mortes na Europa. Em Itália a progressão do contágio começa agigantar-se. E é entretanto chegado o Carnaval, com a habitual e ruidosa invasão espanhola. Sem medos, portanto.
Algures no tempo a partir desta data, as situações sucederam-se em catadupa. A apreensão deu lugar às piadas virais. Ninguém se sentia seguro. Nem com luvas, ou máscaras, ou rios de desinfectantes espalhados por cada ombreira, cada recanto. Todos têm família. Todos têm medo.
Reduz-se a capacidade produtiva, criam-se barreiras físicas com distâncias de segurança controladas - que ninguém quer cumprir, mas enfim - reduz-se o horário de funcionamento, cria-se espaço de isolamento que preenche os requisitos do Plano de Contingência Nacional.
Em menos de um mês estávamos em casa, a cumprir quarentena. Duzentas pessoas. Em quarenta e três anos de trabalho, foi a primeira vez que a porta fechou. Não quero nem consigo imaginar o silêncio total, o tom pardacento e espectral do vazio. Não volto enquanto não for para voltar.
A empresa assumiu o primeiro mês. Depois veio o lay-off.
Estou há 46 dias em casa. Saí uma vez por semana. Pertencemos aos famigerados grupos de risco, devido a condições preexistentes.
A família chegada, filhas e netos, está a cumprir o seu dever cívico, longe de nós, para nossa protecção. Não lhes toco há 50 dias. Sinto a falta do carinho, do toque e do cheiro que não se aplaca com telefonemas ou videochamadas.
Durante a primeira semana, li. Cozinhei. Vi séries de TV. Devorei todos os noticiários. Fartei-me.
A neta tinha saudades. Começámos a “fazer filmes”. Eles riem, nós rimos, todos se divertem e muitos gostam. O tempo passa sem ser a encher chouriços… um projecto por dia. Uma bufonaria salutar, para passar o tempo que se enfada e nos amofina.
Penso muito na minha mãe e no medo que ela ia sentir de ter que viver em confinamento. Um dos poucos dias que não saiu, foi no dia em que se finou, sozinha, sentada a descansar. Fez dois anos. Deus foi bom.
Mais duas semanas e chega o “regresso à normalidade". Qual normalidade? A do medo? Teremos deixado de ser grupo de risco assim de repente? Nós, os que cumprimos religiosamente o isolamento, não estaremos tão condenados como os que andaram por aí a cirandar? Da irresponsabilidade, gastaria mares de palavras.
Se quero sair? Quero. Muito. Se tenho medo de morrer? Tenho. Ninguém está preparado. Digam lá o que disserem.
Como dos fracos não reza a história e o país precisa de motor de arranque, vamos lá, de volta para o desaconchego que é o nosso dever.
Penso muito nas dezenas e dezenas de milhares de pessoas que foram para o hospital, testaram positivo e ficaram internadas, elas mais o medo que seguramente não as abandonou por um segundo que fosse.