Regresso de férias
A trombuda no balcão tinha começado a trabalhar há pouco tempo, vestia bem de cara e do resto e a fila não era grande. Como a companhia era low-cost e recente (creio, nunca tinha ouvido falar da WIZZ) seria de esperar que a moça tivesse melhor catadura. Enfim, era uma maldita diaba teutónica, partilhando o país de nascimento com o monstro Adolfo, há que dar um desconto. Ao ver os cartões de embarque, impressos no hotel, perguntou pelos PLC.
Qu’é essa merda, teria perguntado se estivesse a tratar da logística, tarefa que felizmente competia, no grupo familiar, a pessoa mais competente e aprazível do que eu.
PLC quer dizer passenger locator card e a necessidade de semelhante papeleta constava de um e-mail da companhia de aviação que não foi lido até ao fim. As companhias, quando ganham tiques majestáticos, e ganham quase sempre, julgam que as tretas que ejaculam merecem atenção. É preciso ir a um site e preencher as seguintes informações:
Nome completo
Nº do documento de identificação
Data de nascimento
Género (prevê a hipótese “outro”, que seria o que me conviria, por ser da variedade que não reconhece géneros mas apenas sexos, mas parece que é uma que não está reconhecida entre as 73 oficiais)
Morada completa em Portugal
Número de telemóvel
Endereço de correio electrónico
Morada permanente
O preenchimento tem macetes: para indicar datas tem de se ticar nos calendariozinhos disponibilizados, Deus nos livre de simplesmente escrever; e para indicar o número de telefone tem de se pôr “+” e o indicativo do país, mesmo que o que lá está pré-assumido esteja correcto. Senão, nicles.
Vencido o Gólgota informático, recebe-se no e-mail o tal cartão. Mas, para o abrir, é precisa uma chave, que vem a ser o número do documento de identificação. Deus nos livre porém de pôr espaços onde não há (os cartões de cidadão, ao contrário dos antigos bilhetes de identidade, têm espaços e letrinhas, sabe Deus para quê), ou não os pôr havendo, que o sistema não está para frescuras: não abre e pronto.
Parece que quem não tiver esses telefones que dão acesso à internet, ou não souber navegar nos mares da burocracia internética, recebe um papel para preencher. Em teoria. Na prática, os únicos papéis que vi disponibilizar foram guardanapos, para quem encomendasse bebidas.
Durante o almoço no aeroporto, porque havia tempo, desembrulhou-se a meada e cada uma das pessoas do alegre grupo de três ficou munida do cartão de cidadão, do digital de vacinação, do de embarque e deste PLC. Sem o primeiro não se existe e sem o de embarque não se viaja, e doutra maneira não se vê que possa ser.
Agora, que sem o de vacinação se seja um pária que nem consegue ser servido num restaurante, dormir num hotel ou ver um espectáculo, custa a engolir: quem se quer proteger vacina-se, mas como o vacinado continua a poder infectar e ser infectado (ao contrário de outras vacinas para outras doenças, por exemplo o sarampo) não se vê qual é o bem comum que a obrigatoriedade protege - a menos que seja a autoridade, sem peias, das autoridades, que precisamente não é um bem mas um mal, e dos piores.
De cedência em cedência, estamos lentamente a ficar chineses na irrelevância dos direitos do indivíduo e na prepotência intrusiva dos poderes públicos. E isto seria, se a comunicação social não fosse um corpo de eunucos analfabetos, atentos, veneradores e obrigados aos poderes, fonte de permanente escândalo.
Mas no meu querido Portugal as coisas ganham, às vezes, contornos inesperados. Porque o tal cartão PLC não foi pedido nem na porta de embarque, nem no avião, nem à chegada, nem em lado nenhum. Em suma, não serve para nada.
Portugal é um país, e não deve haver muitos, onde por vezes se encontra o que se diz ser um atributo divino: fazer direito por linhas tortas.