Regresso a Danang (5)
Não há guerras justas. Nunca houve. O lastro de destruição que qualquer guerra deixa jamais encontrará justificação nos êxitos alcançados pelas gerações sobreviventes. Se quando andei por Hanói e fui a Ha Long Bay, no antigo Vietname do Norte, encontrei gente de idade bastante avançada e alguns ainda falando francês, em Danang praticamente não há velhos. Os octogenários e nonagenários que vemos em qualquer local da China, de Taiwan ou do Japão não existem por estes lados. De quando em vez vê-se uma idosa, mas a maioria dos mais velhos não deve ultrapassar os setenta anos. Creio que por essa razão, no que será uma consequência das guerras, primeiro contra os franceses, depois contra os norte-americanos e os sulistas, por aqui vê-se imensa gente nova. Gente entre os vinte e os quarenta, gente bem disposta, simpática, afável. E muitas crianças percorrendo as ruas, saindo das escolas aos magotes nas suas fardas típicas de escolas chinesas e colégios católicos, cumprimentando os estrangeiros, aguardando que os pais os venham buscar nas suas motoretas, e também escuteiros. O facto de haver muita gente nova é aliás perceptível no número elevado de casais enamorados que merenda e se passeia ao final da tarde, trocando carícias, olhares e sorrisos, incluindo com quem passa e inadvertidamente foi espectador de um beijo mais prolongado ou de uma ternura mais efusiva.
A explosão demográfica ajudou a reconstrução do país e o seu desenvolvimento. A beleza daquele e as suas riquezas naturais contribuem para este, levando inclusive à manutenção de conflitos territoriais com a vizinhança, mas a juventude da nação, a sua capacidade de trabalho e a pujança de que dá mostras são seguramente os seus valores mais seguros.
Os avanços da engenharia e da arquitectura reflectem-se na construção de túneis, edifícios modernos, novas fábricas, novas vias de comunicação, modernas pontes e até viadutos, que aos poucos surgem por todo o lado. Um dos melhores exemplos da aplicação vietnamita é dado pelas moderníssimas bicicletas Mekong. Fazendo uso da lendária resistência do bambu e recorrendo a acrescentos japoneses da Shimano, os vietnamitas foram capazes de produzir um veículo que faz as delícias de qualquer amante das bicicletas de montanha e de todo-o-terreno. Qualidade de construção, acabamentos impecáveis, resistência do material e design inovador. Nada de inventar rodas elípticas ou quadradas que não servem para nada.
O parque de motociclos que já era grande há vinte anos modernizou-se. Motociclos italianos da gama alta, japoneses, coreanos e taiwaneses fazem concorrência aos chineses. Os carros são quase todos novos, também estes na sua maioria japoneses e coreanos, embora já se vejam carros da Porsche (do modelo “Panamera”), da Volkswagen e eu próprio tenha sido transportado do aeroporto até ao hotel num moderno BMW 520i porque não havia nenhum shuttle disponível para me ir buscar (não me cobraram nada por esse upgrade). E em vez dos velhos veículos herdados do tempo da guerra vemos actualmente jipes novos, pintados com as cores militares de antigamente, e sidecars prontos para serem alugados aos turistas.
Por falar em veículos e estradas há um ponto, pelo menos, em que muito haverá a fazer. As passadeiras, isto é, as zebras para peões, é como se não existissem. Atravessá-las é uma aventura porque os táxis, camiões e motas buzinam a quem vai na passadeira, sem abrandarem, apenas para os peões saberem que correm o risco de ser atropelados a qualquer momento e que se devem desviar ou imobilizar. Convém por isso ter muita atenção e gesticular decididamente pois será a única forma de perceberem que queremos mesmo atravessar a rua e que alguém terá de parar para que o possamos fazer em segurança. Pode-se pensar que onde há semáforos, e eles são novíssimos e com contagem do tempo, seria mais fácil atravessar a rua. Pura ilusão. Não será por acaso que gozando com o caos que a esse nível se vive os vietnamitas dizem que o verde é para avançar, o amarelo também é para avançar e com o vermelho “ainda se pode avançar”. Há inclusive t-shirts alusivas ao fenómeno. A isso e aos iphones.
Este é outro sinal da modernização. A Internet, os ipads, os iphones e as redes Wi-Fi estão disseminadas e existem em praticamente todo o lado. Em Hoi An e Danang vi salas e barracões cheios de gente, ao final da tarde, que acedia à Internet pagando à hora.
Também o número de instituições bancárias e de cambistas é notável. Dos bancos estatais recordo o VietinBank, Agribank, Vietcombank, Bank for Investment and Development of Vietnam, Housing Bank of Mekong Delta, e dos privados mais três dezenas, sem esquecer as filiais e sucursais do Citibank, do Bangkok Bank, do BOA, do BNP Paribas, do Deutsche Bank, do Mizuho, entre outros. Deve haver mercados livres onde não há tantos bancos e tanta concorrência. Se outrora o câmbio era privilégio do Banco Central do Vietname, onde se entrava com dólares na carteira e se saía de lá com sacos de supermercado atafulhados de dongs, isso desapareceu. E não só não são precisos sacos – há notas com o valor facial de 500.000 – como em hotéis e agentes de viagem se fazem câmbios de porta aberta a qualquer hora. É só uma questão de escolher o que mais convém. O dólar continua a ser a moeda de referência e a mais valorizada, havendo restaurantes que apresentam a conta em dólares e em dongs. Se pagar em dólares recebe o troco em dólares e se não houver os suficientes em caixa terá o remanescente em dongs. E também pode pagar com cartão de crédito ou ir levantar dinheiro à ATM (caixa multibanco) mais próxima.
A terminar, gostaria de deixar duas referências fundamentais. A um museu que merece ser visitado pelo que lá se guarda – o Cham Museum – e a Lady Buddha. Quando em meados dos anos noventa estive no Cham, por lá não havia ar-condicionado, as instalações estavam impregnadas de humidade e as janelas ficavam abertas por causa do calor. O museu era numa zona pouco movimentada. Agora as janelas para o exterior estão fechadas, o jardim arranjado, está no meio do corrupio citadino, entalado entre as novas avenidas, a moderna marginal e a Dragon Bridge. Lady Buddha é um santuário que fica na península de Son Tra. Trata-se de uma figura que está para Danang como o Cristo-Rei para Lisboa ou o Corcovado para o Rio de Janeiro. Possui vários templos, estátuas, bonsais espectaculares e dali é possível ter uma vista magnífica para a cidade e todo o extenso areal da China Beach, avistando-se ao fundo o recorte das Marble Mountains.
Esta foi a imagem com que fiquei das minhas últimas horas. Será com ela que me farei acompanhar até poder voltar, com redobrada curiosidade, para rever Ho Chi Minh, o Rex e o Intercontinental, ir a Vung Tau e Nha Trang e voltar a descer as margens do Mekong.
Oxalá não passem outros vinte anos. Por mim digo, pelos vietnamitas também. Gente como esta é cada vez mais raro encontrar-se. Quem passou pelo que eles passaram e está como está, de sorriso largo nos olhos e doce nas palavras, como se tivesse vivido sempre assim, só pode merecer a nossa admiração, o nosso respeito e a nossa visita. Sempre que possível.