Regresso a Danang (1)
Não há regressos perfeitos. Alguns, apesar das circunstâncias, podem ser agradáveis, retemperadores, reconfortantes para a alma. Passaram pouco mais de vinte anos. Há vinte anos, dias depois de ter sido anunciado o levantamento parcial do embargo norte-americano ao Vietname, viajei de Hanói para Danang a bordo de um velho Tupolev que tremia por todos os lados e pingava água no interior da cabina. Nessa altura ainda eram muitos os vestígios da guerra. O aeroporto era um barracão e havia velhos aviões de combate e tanques abandonados e destruídos. Danang tinha um velho hotel junto ao rio que acolhia ocidentais e que com algum favor podia ser considerado um 3 estrelas sofrível, mas já se sentia o movimento de fim de tarde junto ao rio. Para ir a Hué fi-lo de comboio, percorrendo a sinuosa e espectacular linha que atravessa o Hai Van Pass, num ritmo lento e compassado, com inúmeras paragens, em carruagens com assentos de madeira, enquanto os miúdos vendiam mangas e amendoins. E o regresso para fazer os pouco mais de 100 km que separavam os dois locais foi feito por estrada, durante longas e intermináveis horas. Nessa altura ouvi histórias da revolução, da guerra com os americanos, lendas do tempo da ocupação francesa. E vi gente que renascia, gente com esperança, gente que sabia das dificuldades de um quotidiano que aos poucos deixava a destruição para trás, gente que apesar de tudo sorria. E ia à escola.
Viajar, para quem o faz por gosto, é sempre um prazer desde que saibamos ser capazes de nos transportarmos no tempo até ao nosso destino. E procurar compreendê-lo. Esse ainda é para muitos um privilégio. Poder fazê-lo regressando vinte anos depois para avaliar as diferenças é um duplo privilégio.
Desta vez o voo foi nocturno, a bordo de um confortável Airbus. A aterragem foi suave, não choveu dentro do avião nem as portas dos compartimentos destinados à bagagem de mão se abriu sob as nossas cabeças quando o avião tocou a pista. Não foi preciso, depois, caminhar por esta com chuva até ao terminal quando a aeronave se imobilizou. O velho barracão com ventoinhas e muitas fardas verdes foi substituído por um edifício novo, com mangas que recebem os passageiros e os encaminham para escadas rolantes. Há aparelhos de ar-condicionado e emitem-se vistos a troco de dólares. O apeadeiro interno tornou-se num aeroporto internacional onde hordas de americanos, australianos, japoneses e coreanos são recebidos com um formal "good evening" por quem carimba os passaportes. O ritmo é outro.
Nos táxis também. Bem mais lentos a circular devido às pesadas limitações de velocidade, agora multiplicam-se. Têm todos taxímetro, dão recibo se se pedir, alguns aceitam cartões de crédito e ninguém perde tempo a regatear preços. E os motoristas esforçam-se todos por falar inglês e meter conversa. Há verdes, brancos, azuis, amarelos, mais pequenos, maiores, familiares. Milhares de bicicletas e scooters para alugar, com ou sem pilotagem. E há sempre um sorriso para quem chega, para quem entra ou para quem sai.
Quarenta anos depois do fim da guerra, vinte anos depois do levantamento do embargo, há militares norte-americanos fardados no meu hotel. São oficiais da marinha. Vejo que muitos estão "altamente" condecorados. Não sei se vieram para as comemorações dos 40 anos da libertação ou se residem cá, pois tão depressa os vejo fardados à espera de um carro como de havaianas num dos bares do hotel bebendo uma Larue ou uma Tiger ao final da tarde, quando a brisa húmida que vem dos lados de Son Tra se começa a fazer sentir. A postura é bem diferente daquela que o cinema durante décadas nos transmitiu e de que ainda há poucos anos alguns continuavam a dar mostras na infame Manila. Talhado hoje em modos cordiais e educados, o trato reflecte também a mudança, o novo modo de encarar e de se relacionar com o outro.
A Catedral de Danang, construída pelos franceses em 1923, engalanou-se para a Páscoa. As celebrações começaram logo na quinta-feira à tarde, 2 de Abril, como é norma nos países católicos. Foi necessário realizar as cerimónias no exterior, no terreiro fronteiro, colocar colunas de som e acomodar toda a gente que ordeiramente chegava nas suas camisas brancas impecavelmente limpas e engomadas. Os mais velhos nos lugares da frente, os outros mais para trás. Famílias inteiras com as crianças pela mão, asseadas, penteadas, bem cheirosas. O coro estrategicamente colocado e ensaiado. Elas sempre elegantes nos seus vestidos claros tradicionais, no seu chapéu, substituindo o capacete que ficara na mota, pendurado, sem cadeados. Como os de todos os outros. Do outro lado da Tran Phu os megafones estavam silenciosos. A catedral convive bem com os cartazes, com as fotografias de Ho Chi Minh e os festejos dos 40 anos da libertação. O culto pacífico, livre, aberto e respeitado, acompanhado das tradicionais canções da época, talvez seja hoje um dos sinais mais fulgurantes da mudança. Desta vez não dei com igrejas encerradas, com portões fechados a cadeado.
Não sei se foi isto que em 1975 os americanos pensaram que ia acontecer. O país é o mesmo. A república ainda se intitula de socialista. Desconheço se alguma vez imaginaram ver a fotografia do Che substituída nas t-shirts vermelhas pela caricatura de um símio barbudo em que o "Viva La Revolución" deu lugar a um "Viva la Evolución". O "r" da revolução caiu. O dos sorrisos, a dobrar, permanece.