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Delito de Opinião

Refugiados e terrorismo

Diogo Noivo, 28.07.16

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O Líbano é dos países que mais sofrem com a crise dos refugiados sírios. Acolhe cerca de 1,1 milhões de refugiados, o que significa que 1 em cada 5 habitantes é um migrante em fuga da guerra. É o Estado que, per capita, mais refugiados alberga. Em termos absolutos, e com base em dados do Alto Comissariado da ONU para os refugiados, só o Paquistão e a Turquia o ultrapassam. Assumindo que Portugal tem 11 milhões de habitantes, teríamos que receber 2.2 milhões de refugiados para enfrentar um desafio (político, económico, humanitário, de segurança) semelhante. Semelhante, não igual. Importa ter presente que o território libanês é aproximadamente um terço da área total do nosso Alentejo.

 

O quadro desenhado por estes números é avassalador e explica bem a atenção dada ao Líbano quando se fala de refugiados sírios. Essa atenção fez soar os alarmes quando, em Setembro de 2015, o Ministro da Educação libanês afirmou que cerca de 2% dos refugiados sírios são terroristas do auto-denominado Estado Islâmico. Não foi o ministro do Interior, o ministro da Defesa, o ministro dos Negócios Estrangeiros, nem tão-pouco o Primeiro-Ministro. Foi o ministro da Educação.  Felizmente, este governante libanês tinha pela frente um jornalista – e não um jornaleiro – que o inquiriu sobre a fonte da qual provinha essa percentagem. O ministro foi honesto. Poderia ter respondido “não posso revelar”, ou então “fontes seguras”, ou ainda “é uma estimativa preliminar das nossas Forças e Serviços de Segurança”. Mas não. O ministro disse abertamente que os 2% eram um “gut feeling”. Como nunca devemos permitir que os detalhes estraguem uma boa história, estes 2% continuam a circular pela imprensa e pelos blogues com o valor de dado científico. Claro, sempre que há um problema de segurança provocado por um refugiado, os 2% são inflacionados para 100%, mas isso já é tema para outro post. Por agora, importa perguntar se estes 2%, imaginando que são reais, justificam que se lance um anátema sobre os restantes 98%.

 

Não abundam estudos recentes que analisem a relação entre terrorismo e refugiados. Porém, os trabalhos existentes descartam qualquer relação entre estes dois fenómenos. Mais, as estatísticas disponíveis reforçam essa conclusão: os Estados Unidos da América acolheram 784.000 refugiados desde o dia 11 de Setembro de 2011; destes, apenas 3 foram detidos por envolvimento em actividades terroristas. Se formos mais abrangentes e incluirmos todo o tipo de criminalidade, os resultados não diferem muito: na Alemanha, entre 2014 e 2015, os crimes cometidos por refugiados aumentaram 79%, sendo certo que nesse mesmo período o número de refugiados aumentou 440%.

Estes números não explicam a associação, que se vai lendo e ouvindo, entre terrorismo e refugiados. Mas há outros que talvez sim. Um estudo de opinião, realizado pelo Pew Research Center, sugere que a relação entre violência terrorista e vagas de refugiados é produto de preconceitos e de apofenia (percepção de padrões e relações com base em informação aleatória ou inconclusiva).

 

Enfim, nada disto interessa. Como escreveu Peter Pomerantsev na revista Granta, vivemos num mundo pós-facto, onde imperam as “tecno-fantasias” ao alcance de um click, suficientemente diversificadas para validar toda e qualquer convicção pessoal. A realidade, mais do que acessória, é um incómodo. Testemunhos como o de Matilde, sobrinha da nossa Francisca Prieto, serão caridade inocente. Testemunhos como o de Helena Araújo, no Destreza das Dúvidas, serão propaganda. Como será propaganda o caso notável de Mohamed Al Uattar, um médico sírio a exercer no centro de saúde de Estremoz. Trabalhou na Cruz Vermelha, colabora com o INEM e presta assistência na CERCI, o que, segundo os detractores do Islão, será certamente uma estratégia rebuscada do autoproclamado Estado Islâmico para meter Portugal de burqa.

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