Reflexões europeístas (10)
Ulisses Cegando Polifemo, de William Turner (1829)
Em Portugal, indiferentes à realidade circundante, os mais diversos protagonistas ocupam a todo o momento os púlpitos mediáticos em pose e tom de salvadores da pátria: propõem medidas populistas destinadas por um lado a colher aplausos fáceis enquanto por outro agravam os riscos da execução orçamental e condicionam as nossas precárias finanças públicas prometendo cortar receitas e aumentar despesas. Exactamente ao contrário do que recomendaria a mais elementar prudência num país que foi sujeito a três intervenções externas de emergência em 38 anos de democracia constitucional.
Como se permanecêssemos mergulhados nos anos de ilusória prosperidade que conduziram à situação actual e a Europa, enquanto projecto de unidade económica e política, não estivesse hoje sob premente ameaça.
Não é preciso sequer ser um espectador diário de telejornais para se divisarem as nuvens negras a crescer no horizonte: antevê-se a prazo uma explosão de nacionalismos exacerbados, violência extremista, tensões xenófobas, pulsões autoritárias. Alguns indícios dessa tendência podem resultar já do escrutínio do próximo domingo.
Numa campanha onde quase ninguém discute a Europa -- quando há poucos anos não havia ninguém que não antevisse o "fim do euro" ou clamasse palavras de alerta sobre o "fim" da própria Europa -- apetece-me remar contra a corrente. Em defesa desta Europa -- mesmo descaracterizada, mesmo intranquila, mesmo vacilante.
Porque a Europa, queiramos ou não, é cada vez mais importante nas vidas de todos nós.
É para a Europa que emigram muitos jovens portugueses.
É da Europa que chega a maior parte do investimento que nos é tão indispensável.
É com a Europa que asseguramos a esmagadora maioria das nossas trocas comerciais.
E é com a Europa que sairemos da crise - jamais contra a Europa.
As fronteiras europeias foram durante séculos as mais perigosas do globo. Jean Monnet, Robert Schuman, Alcide di Gasperi, Winston Churchill, Ernest Bevin, Paul-Henri Spaak e Konrad Adenauer -- além do presidente norte-americano Harry Truman, através do Plano Marshall -- contribuíram para diluir conflitos e limar arestas que pareciam insuperáveis, reiventando a Europa que emergiu das cinzas da guerra como um baluarte de cidadania, concórdia, progresso e esperança.
Vivemos numa expectativa tensa, num fugaz tempo de interlúdio. Um tempo em que os deuses morreram e Cristo ainda está por nascer, para usar uma magnífica metáfora de Marguerite Yourcenar -- património franco-belga, património da Europa, património do mundo sem fronteiras.
Contra o que apregoam os profetas da desgraça, que tentam dividir para reinar, tenhamos noção daquilo que nos une. A filosofia grega é património comum de cada europeu. Como o direito romano. E a Odisseia, de Homero, que inaugura a história da literatura. Da Vinci é património europeu. Como Mozart.
Não há rasto nem memória de tão rico e diverso património cultural em qualquer outro continente. É algo que nos honra. E deve suscitar-nos orgulho -- de Gdansk a Trieste, de Helsínquia a Lisboa.