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Delito de Opinião

Reflexão sobre as eleições presidenciais dos EUA

João André, 08.11.16

Hoje milhões de americanos (correcção: noter-americanos; nova correcção: estado-unidenses) irão às urnas. Cerca de 40 milhões já o terão feito por recurso ao voto antecipado. Se há democracias maiores, esta é a mais importante do mundo e mesmo quem não gosta do país terá dificuldades em o negar.

 

Na escolha do próximo presidente há 6 candidatos possíveis, 4 com visibilidade nacional mas só 2 têm reais possibilidades de vencer. Pessoalmente não subscrevo a tese do voto útil, especialmente num país como os EUA. Mesmo que um voto mais de acordo com a consciência e ideologia de cada um (em Gary Johnson para os Libertários ou Jill Stein para os Verdes, por exemplo) leve à eleição de alguém de quem não se goste, o país tem fundações democráticas sólidas que evitariam que uma presidência, independentemente da figura, acabasse num desastre consumado. Se o voto útil acontecer, deve ser porque o medo da eleição de alguém não desejado se sobrepõe às preferências individuais.

 

Não vou escrever muito sobre Donald Trump. A sua personalidade pública (aquela que podemos ver) é a de um ignorante, misógeno, xenófobo, racista, brutamontes, mitómano, egomaníaco e narcisista (estas duas também parecem fazer parte da sua faceta privada). Isso, por si só, é suficiente para o desqualificar de qualquer presidência.

 

Falar em Hillary Rodham Clinton é questionar a razão para o ódio que lhe é dirigido. Parece em parte provir da sua ambição, mas faz sentido perguntar se a de outros homens teria sido questionada. A sua parte na reforma (falhada) do sistema de saúde aquando da presidência de Bill Clinton também parece contribuir. Igualmente o seu muito criticável hábito de secretismo (que levou ao caso dos e-mails em servidores privados) a torna alvo de desconfiança. Não ajuda que seja uma mulher que não gere empatia, sendo mais cerebral e fria que aquilo que se esperaria. Contudo, nada que não se veja noutros políticos.

 

Este ódio que ela gera à direita é ainda mais estranho pelo simples facto de ela ser, mesmo dentro do panorama político americano, tudo menos uma esquerdista (os americanos preferem o irónico “liberal”). Na política americana ela deveria ser colocada no centro, com alguns pontos mais à esquerda mas nunca por muito. Na Europa ela seria colocada firmemente no território da democracia-cristã, num centro-direita claro.

 

Como seria a sua política como presidente? Provavelmente aborrecidamente sólida. O seu currículo como secretária de estado ou senadora indica que é conhecedora dos dossiers mas prefere avanços feitos por pequenos passos, sólidos mas sem aventuras. Também tem hábito de conseguir obter colaborações com republicanos, mesmo alguns que eram visceralmente contra ela. Não parece guardar (muitos) rancores e engole por vezes o orgulho para atingir os seus objectivos.

 

É vista pela esquerda como demasiado próxima aos grandes grupos empresariais. Isto é um facto. As suas presenças no circuito de discursos nos EUA trouxe-lhe uma fortuna agradável e forte proximidade a CEOs e outras figuras do mundo empresarial e financeiro dos EUA. No entanto isso deveria ser uma vantagem. Tais personalidades conseguem ter sempre acesso a qualquer presidente: os montantes que controlam ou influenciam, directa ou indirectamente, garante-o. Ter na presidência alguém que conhecem e com quem conversaram no passado garante um diálogo mais certo que aquele que Bernie Sanders (por exemplo) conseguiria. Isso poderá permitir mudanças a leis ou reformas que de outra forma veriam a oposição dessas pessoas.

 

A forma como Clinton aceitou incorporar propostas de Sanders também poderá jogar a seu favor na presidência. Pode lançar para a arena propostas mais à esquerda do que desejaria para, após a sua rejeição, propôr alternativas que incialmente preferiria. Sendo Clinton uma política orientada para procurar consenso, isso ajudá-la-ia imenso.

 

O principal obstáculo será sempre um congresso (e talvez um senado) controlado pelos republicanos. Isso em si não é mau. O sistema de checks and balances dos EUA procura precisamente esses equilíbrios entre os vários órgãos executivos (se bem que ter ambas as câmaras a operem-se-lhe pode ser demais). O obstáculo é que muitos republicanos começam a ver o valor de optar por uma política de terra queimada e de ataque ao sistema político de Washington, sem permitir a mais simples sombra de compromisso. Isso poderá levá-los a rejeitar toda e qualquer proposta de uma presidente Clinton, mesmo que vá de encontro aos seus interesses e ideias. No entanto, mais uma vez, a alternativa seria pior.

 

Do lado democrata, a alternativa era Bernie Sanders, alguém de quem eu estaria mais próximo ideologicamente. Num cenário europeu Sanders estaria talvez no centro esquerda (depende do país: nos países escandinavos até poderia assemelhar-se por vezes a um centrista). Só que nos EUA ele está tão à esquerda que teria oposição não apenas dos republicanos (mesmos em recorrerem a intransigências) mas também de muitos democratas. Tivesse ele sido escolhido como candidato democrata contra Trump e o cenário seria o de um frente a frente entre um futuro de parálise e outro de incompetência.

 

Penso que os americanos/norte-americanos/estado-unidenses acabarão por escolher Clinton. Escolher Trump será um desastre não por si mesmo (os checks and balances manter-se-iam) mas porque muitos representantes republicanos sentiriam a necessidade de o apoiar, quanto mais não seja para aproveitarem a onda. A escolha de Clinton é pouco apelativa pelo que promete, mas é sólida e basta em si mesma pelo aspecto transformativo que possui (a eleição da primeira mulher presidente após a eleição do primeiro presidente negro). É aborrecida mas isso não é necessariamente mau. No entanto, se finda a contagem Trump acabar na Casa Branca (e deitar fora os outros retratos presidenciais para os substituir pelo seu próprio), a culpa será em grande parte do próprio Partido Democrata.

 

PS: sobre a rejeição da esquerda a Hillary Clinton e os comentários de Slavoj Žižek, basta ler este comentário de Alexandra Lucas Coelho. Não subscrevo a sua visão de Clinton (embora não tenha o seu conhecimento específico), mas a sua análise é claríssima.

3 comentários

  • Sem imagem de perfil

    Jorg 09.11.2016

    Espalhei- me na previsão!
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    João André 09.11.2016

    Infelizmente não foi o único.
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