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Delito de Opinião

Redes, para que vos quero?

José Meireles Graça, 10.01.25

A propósito do anúncio de Mark Zuckerberg de que iria desmontar a sua estrutura de fact-checking nas redes que controla, reconhecendo explicitamente que no passado nelas foi, através daquele instrumento, praticada censura, Henrique Raposo borda uma salgalhada de considerações consistentes umas, erróneas outras, e em ambas passando ao lado do problema.

Um ponto prévio: A decisão e a confissão de Mark ou são ingénuas porque poderia discretamente fazer a mesma coisa sem confessar nem reconhecer nada, ou oportunistas porque o ar do tempo já não é bidénico mas trumpista, ou calculistas porque aquele magnata faz ou não faz censura segundo a percepção que tem do que pode ajudar ao sucesso comercial do Facebook, Instagram, Threads e WhatsApp. Porém: Deus, como é sabido, escreve direito por linhas tortas, e talvez por isso devamos achar que, quaisquer que tenham sido as motivações, o ar ficou mais respirável porque mais livre.

Que diz então Raposo?

Que a decisão “mostra como todo o aparelho intelectual de Zuckerberg e, por arrasto, do Facebook, Instagram e WhatsApp é perigoso, porque não percebe a diferença entre censura e civilização, porque assume que a verdade não é neutra e objetiva, mas sim uma mera derivação de quem está no poder”.

Ou seja, a situação anterior não constituía qualquer perigo porque a censura, embora traduzisse uma maneira particular de ver o mundo, era um testemunho de civilização; e agora que quem verifica os factos e as opiniões deixa de ser um algoritmo comandado por uma burocracia para passarem a ser os leitores, passamos a viver num novo mundo assustador. Assustador para quem?

Nesta altura vem à liça uma boa colecção de filósofos e pensadores para desembocar nisto: “É por isso que o capitalismo é apenas um dos instrumentos da república. Além do mercado, a república tem dentro de si a democracia e o estado de direito, por exemplo, além das comunidades ou corpos intermédios”.

Tem sim senhor. Mas também, e sobretudo, o cidadão, ao serviço do qual estão, ou deveriam estar, todas as instituições. E é este que sai beneficiado quando se lhe permite, como as redes permitem, fazer ouvir a sua voz, venha ela aos gritos, em português deficiente, com preconceitos e crenças infundadas, retrógrada e todos os demais adjectivos depreciativos que todo o intelectual, porque sabe, dependura ao pescoço do anónimo, porque ignora.

Pondo o nome aos bois, acrescenta Raposo: “Ora, o que temos neste momento é a fusão entre a amoralidade pós-moderna da esquerda do pós-verdade com a amoralidade neoliberal ou anarcocapitalista de homens como Musk e Zuckerberg…” porque “se querem pensar e dizer que a eleição de 2020 foi roubada, que a terra é plana ou que as vacinas são veneno, as pessoas têm esse direito e eu, Mark e Elon, vou fornecer/vender essa mentira”.

Permitir que as pessoas digam estes e outros disparates (de calibre desigual, aliás, nestes exemplos) não é vender coisa alguma porque a mesma liberdade que autoriza a dizer estas coisas serve para dizer precisamente o oposto. Sucede que se se quer proibir as pessoas de proferirem tolices, inverdades, dislates e teorias da conspiração, alguém terá de decidir o que cabe dentro destas categorias. E das duas uma: ou são os proprietários das redes, e concede-se-lhes mais poder do que o que é razoável, ou são as autoridades e abre-se a porta ao controle da informação e da opinião – o Poder, quando fiscaliza a opinião, desde logo impede que sejam postas em causa as suas verdades, decisões, escolhas e políticas. Dir-se-á que o jogo democrático chega para garantir o contraditório. Mas não chega porque não faltam exemplos de que são justamente as redes, e as informações e opiniões que veiculam, que alimentam quem está no poder e quem quer estar. Uma opinião domesticada quer dizer Situação; e uma Oposição entregue apenas aos mecanismos do aquário político quer dizer rotativismo.

Prosseguindo: “A democracia é colocada em causa todos os dias quando uma das partes recusa conceder uma derrota eleitoral, mantendo a ficção de que 2020 foi roubada.”

O confuso sistema eleitoral americano, com processos diferentes de votação e primarismo em alguns deles, para além de alguns casos confirmados de aldrabice ou razoavelmente suspeitos, recomenda apenas uma coisa: revisão da transparência de processos. E não recomenda outra: impedir que quem tem dúvidas, ou certezas infundadas, não as possa manifestar. Afinal o eleitorado acabou por dar a vitória ao candidato anteriormente derrotado, decerto por achar que este, mesmo que não tenha razão neste particular, tem noutros. E como Trump não é pessoa que se possa amordaçar, o que decorre do alegado perigo para a democracia desta liberdade de Trump não ter aceitado a derrota é que a única maneira de o impedir de seria prendê-lo ou proibir-lhe a candidatura. Seria uma solução que Maduro, esse ínclito democrata, ou a nossa estimável Isabel Moreira, decerto aplaudiriam.

Vem a seguir uma objurgatória contra o jornalismo actual, que é, de um lado, “populista” e, do outro, “liberal”, e isto porque “é preciso ter notícias para todos os gostos”. E esta triste circunstância leva a que não seja possível “separar o trigo do joio”.

Lamento informar que jornalismo de trigo e jornalismo de joio sempre existiram; que essas categorias de populista e liberal têm para mim, provavelmente, um conteúdo diferente porque o meu sistema de valores não é o mesmo de Raposo nem é o mesmo para todas as pessoas; e que precisamente porque o viés nas notícias existe é que a colectividade se enriquece quando é exposta a versões diferentes da realidade. A distinção entre facto e opinião está longe de ser sempre nítida e a interpretação dos mesmos factos feita por pessoas diferentes resulta quase sempre diferente: que o digam os historiadores e os espectadores de acidentes de automóvel.

Um bom exemplo de viés dá-nos Raposo a seguir quando diz, a propósito do “escândalo das violações de raparigas às mãos de gangues alegadamente muçulmanos no Reino Unido”, que “a polícia ignorou as violações cometidas por gangues muçulmanos porque ignorou sempre esse tipo de violência sobre as mulheres, ou seja, já ignorava quando os gangues eram só de brancos”.

Não vou elaborar aqui por não valer a pena: as duas situações não são equivalentes nem em extensão nem em importância e esta alegada equivalência resulta simplesmente da incapacidade de Raposo em encarar um facto muitíssimo desagradável: as comunidades muçulmanas são um perigo por o conjunto de valores de que são portadoras (incluindo a desigualdade de direitos entre os sexos) ser muito diferente daqueles a que se chegou no Ocidente.

Esta minha reserva quanto ao multiculturalismo é precisamente uma daquelas que, quando traduzida em discurso, se via silenciada pelo algoritmo, por exemplo, do Facebook, porque seria “discurso de ódio” e “racista”. Tivesse havido mais discurso desse que a imprensa nunca fez e menos mulheres teriam sido violadas.

Segue com um excerto sobre universidades, cultura do cancelamento, ciência, método científico e outras matérias que, com cambiantes aqui e ali, subscreveria.

O que não subscrevo é a conclusão: “Enquanto não destruirmos esta aliança entre pós-modernos de esquerda e anarcocapitalistas de direita vamos continuar neste ping pong até cairmos de vez na boca fascista”.

Destruir como? Prendendo? Ilegalizando? Instituindo censura? E aliança onde? Não vejo qualquer aliança entre saneados e saneadores, bem-pensistas e bloqueados, multiculturalistas e nacionalistas, estatistas e libertários; nem, aliás, estas categorias são homogéneas – o mundo é um sítio complicado.

Tudo visto e ponderado, o que temos aqui, além de outras coisas, é um ressentimento dos magistrados da opinião (Henrique Raposo, Paulo Portas, Miguel Sousa Tavares, entre muitos outros) contra a diminuição do seu poder de formatação da opinião pública, que hoje se vê compelido a competir com o do Chico e o do Manel. Isto e também o ressentimento contra o enorme poder dos magnatas das redes, que todavia apenas são diferentes dos Rupert Murdoch ou Robert Maxwell do passado pela escala e porque os jornais tinham uma linha editorial e não publicavam cão e gato, muito menos tudo e o seu contrário.

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