Recortes do Canhenho
Com a chegada do calor, chegam todas as memórias a ele associadas, as boas e as más. A pior memória que tenho de dias muito quentes é a da morte prematura do meu pai. Também são com o meu pai as memórias mais felizes de dias despreocupados de Verão, na Costa da Caparica, em Albufeira, em Pedras D'El Rei, mas principalmente no campismo, em Lagos, numa altura em que, apesar de já não ser uma menina, não era mulher feita e não tinha preocupações.
Foi por essa altura que fiz de bóia, mergulhei em apneia, andei de barco, conheci o Algarve de ponta a ponta e frequentei pela primeira vez um hotel de 5 estrelas.
Estávamos em 1973 e a Liberdade ainda estava em embrião, apesar de, nas imensas férias de Verão, não se dar pela sua falta. A liberdade de se ser jovem era imensa e envolvia-nos às golfadas.
Depois de um mês de campismo no Parque de Turismo em Lagos e das imensas peripécias que vivíamos diariamente, eis-nos chegados ao momento de regressar a Lisboa. Nesse ano, a partida iria ser diferente: não seria necessário "levantar âncora", porque a Joceline iria ocupar a tenda, de três cómodos, sala, cozinha e avançado, com o Dietmar e o Lars por mais um mês.
Lembro-me de aguardar ansiosa que chegassem. Adorava esta minha prima que casara com um alemão de Bremen, divorciado e folgazão, amante da nossa cultura e principalmente da nossa grastronomia. A Line foi a pessoa mais tranquila que conheci em toda a minha vida. Nunca a ouvi exaltar-se ou levantar a voz. O Dietmar era o homem dos sete ofícios, desde compartilhar a gestão da Electroliber em Portugal até à administração de uma empresa pioneira em máquinas de depenar aves, que ele, numa altura em que a publicidade era cara e as redes sociais ficção científica, se propôs divulgar por todo o Algarve.
A meio de um almoço supimpa providenciado pela minha mãe, o convite chegou inesperadamente. A Dulcinha fica connosco, queres? Claro! Como recusar? Ler, dormir, passear… Adeus mãe, pai, rapazes, que eu fico por cá!
Foram quatro semanas inesquecíveis, a partir do Quartel General em Lagos. Aprendi a ficar quatro minutos sem ar no fundo da piscina, aprimorei a minha natação, acompanhei o Dietmar na pesca submarina na qualidade de bóia, visitei de barco todas as grutas, viajei por todo o Algarve, comi fruta a rodos, assei na praia numa fogueira de gravetos o peixe que se apanhava nas incursões mar adentro, jantei em bons restaurantes e tive uma das mais incríveis experiências da minha vida, num hotel de 5 estrelas em Vale do Lobo, para festejar o final do prolongamento das férias, as vendas das máquinas de depenar aves, as longas noites na praia a cantar belas melodias e o merecido descanso daquele casal maravilhoso, que adorava a vida, os filhos, os desportos e me adorava a mim. Aprendi muito com ambos.
Gostava de ter uma foto do momento em que, com o meu longo cabelo solto, já manchado pelo sol, envergando um caftan cor de salmão com renda na frente, executado primorosamente pela minha mãe, a pele dourada por muitos dias de sol, olhei para o espelho e vi. Vi que era bonita para além de calções e t-shirts e não apenas a maria-rapaz de rabo de cavalo, magra, desengonçada e quase invisível. Senti-me bem. Senti-me feliz.
Ao jantar, à luz das velas, senti também os olhos brilhar. Não é verdade que o brilho não se sente, porque depois de perceberes que o tens, é algo que guardas como uma jóia rara durante toda a vida.
É uma das minhas memórias mais doces, esta de zarpar com ambos à descoberta e ter-me descoberto também a mim.
Ainda agora, nas profundas e cálidas noites algarvias, com a música das ondas que rebentam de mansinho, me chegam os acordes do Edelweiss, que acompanho baixinho, com saudade e gratidão.
(Foto HDF)