Realpolitik
Estamos quase incrédulos por, após tantos anos de estabilidade na Europa, existir um país que insiste em regressar ao mundo de antigamente, ao mundo do equilíbrio de forças, ao mundo onde importa contar o número de soldados, tanques, aviões e fragatas, sempre a olhar para os números dos seus vizinhos. A Rússia, liderada pelo filho da senhora Putina, não gosta do multilateralismo e comporta-se no palco internacional como um bully no recreio da escola. No mundo que ele tenta promover e em que gosta de se movimentar, os mais fracos têm motivos efectivos para temer os mais fortes. Nesse mundo a Rússia não é considerada pelo seu PIB, que mal ultrapassa metade do Reino Unido e é pouco superior ao de Espanha, mas sim pela sua agressividade e capacidade militar.
Para consumo interno o ditador russo sustenta os actuais desenvolvimentos com um emaranhado de justificações históricas que obriga a recuar ao século X, XI e XII, aos tempos do Rus de Kiev, muito antes ainda da cidade de Moscovo ter alguma importância. Esta ligação histórica é usada como justificação para o domínio que agora se busca pela força das armas. Sobre esta justificação recomendo o excelente podcast E o resto é história, em que Rui Ramos lembra que por coincidência, nesse mesmo período histórico a corte dos reis ingleses situava-se em Angers, 300 quilómetros a sudoeste de Paris. Onde é que iríamos parar com a replicação da mesma lógica?
Nos muitos factos que fazem parte da fotografia alargada, não podemos excluir a péssima performance da Rússia perante a pandemia, o consistente decréscimo da sua população, o recuo sólido da esperança média de vida dos seus cidadãos, a fragilidade dos seus serviços públicos, a pobreza de parte significativa da sua população, a perseguição à oposição e à imprensa livre, tudo isto dentro de uma oligarquia autoritária corrompida pelo nepotismo e pelo favorecimento das elites no acesso à exploração dos recursos naturais do país. O apelo nacionalista é sempre uma forma de distrair as massas das possíveis comparações entre os índices de qualidade de vida e de desenvolvimento humano, do próprio país com os do exterior.
Se a Rússia fosse uma democracia razoavelmente funcional, onde o poder estivesse diluído num parlamento verdadeiramente representativo e não tão concentrado no círculo extremamente restrito que rodeia Putin, todo o enquadramento seria diferente. Todo o poder russo assenta na força da autoridade não escrutinada e numa propaganda que condiciona os seus meios de comunicação.
Li há uns tempos no livro Prisioneiros da geografia, de Tim Marshall, que historicamente a Rússia apenas respeita o poder militar, e se existe algo que não respeita em absoluto é a ausência desse mesmo poder. A Rússia continua a seguir as recomendações de Maquiavel, preferindo ser respeitada pelo medo. Os mais crédulos na pureza dos princípios que sustentam o direito internacional poderão ficar chocados, mas o mais forte, sempre que entender levantar a voz, será ouvido.
Do ponto de vista operacional o objectivo desta ofensiva não irá muito além da substituição do governo ucraniano por outro que siga as instruções de Moscovo. Não me surpreenderia que daqui a pouco tempo, a demissão do governo de Zelensky seja a condição exigida para o fim das hostilidades e não vejo como será possível resistir a tal pressão. No momento seguinte a Ucrânia ficará numa situação comparável à da Bielorrússia, ou seja passará a ser um estado fantoche de Moscovo.
Em 2008 tiveram lugar na Geórgia operações não muito diferentes destas, e se notarmos que o então presidente georgiano Mikheil Saakashvili é hoje um preso político no seu país, entenderemos mais facilmente um dos próximos dilemas de Zelensky.
É certo que as sanções internacionais irão causar dores à economia russa, mas como só se dança tango a dois, essas mesmas sanções serão prejudiciais para os seus parceiros económicos onde se incluem muitas empresas europeias. As sanções um dia acabarão por ser levantadas e com o passar do tempo tudo regressará ao business as usual. A maior diferença a médio prazo será o fim da democracia na Ucrânia, que mesmo com algumas limitações tem funcionado.
Olhando para o futuro próximo, recomendo este podcast da TSF. Nesta entrevista o eurodeputado Paulo Rangel fala sobre os mais recentes desenvolvimentos nos Balcãs, sobre a sempre frágil situação da Bósnia-Herzegovina e de como a influência russa sobre a República Srpska, desta federação, pode alimentar mais um factor de turbulência às portas da EU.
Sem dúvida que vivemos tempos interessantes.