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Delito de Opinião

Queres vacina? Toma

Pedro Correia, 17.05.21

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A pressa em inocular os portugueses é tanta que na sexta-feira cheguei a receber três chamadas diferentes propondo-me hora e local para receber a primeira dose da vacina. Perguntei qual era, em qualquer dos casos. Pfizer, responderam-me.

Da primeira vez, um cavalheiro identificando-se como funcionário civil solicitava-me que comparecesse na Junta de Freguesia de S. Domingos de Benfica - a mesma do Estádio da Luz, em flagrante violação dos meus princípios religiosos. Felizmente esta proposta ficou sem efeito: uma hora depois outro cavalheiro, identificando-se como militar, sugeriu um local mais aprazível: o pavilhão junto do Estádio Universitário, onde muito namorei quando frequentava a faculdade. E como não há duas sem três atendi ainda a chamada de uma menina, identificando-se como membro da Administração Regional de Saúde (ARS), pedindo-me que ali comparecesse dez minutos depois da hora que me fora indicada, dada a "grande afluência ao local" entretanto prevista.

Fui e voltei ontem a pé, cruzando o jardim do Campo Grande e a alameda da Cidade Universitária, onde vi plantadas novas gravílias - uma das minhas árvores preferidas. Lá no pavilhão, muita gente. Mas tudo bem organizado. Dois corredores - uns para aqueles que se estreavam nesta vacina, como eu; outros que acorriam à segunda dose, incluindo muitos professores, que preferem intitular-se "docentes".

Ninguém furava a fila, nem era necessário: aquilo fluía com rapidez. A única espera, de alguns minutos, ocorreu quando uma das assistentes comunicou ao responsável que tinha "o recobro cheio". Algumas pessoas aproveitavam para ler um livro, mais mulheres que homens, vá para onde for encontro sempre mais mulheres que homens. E questiono-me onde se meterão eles - alinharão em movimentos anti-vacinas?

 

Comuniquei à médica que nos últimos 15 dias havia estado em contacto indirecto com uma colega entretanto infectada. Ela perguntou-me se usava máscara no local de trabalho. Resposta: sim. E quis saber se me sentia febril ou tinha qualquer outro sintoma. Resposta: não. "Recebe a vacina à mesma, não há problema."

Assim foi. Mal tive tempo de levantar o braço esquerdo e "relaxar os músculos", já a gentil enfemeira estava a pôr e a tirar a agulha. Sugerindo-me que aplicasse ali gelo caso inchasse e doesse nas 48 horas seguintes. Nas imediações andava um repórter da CMTV com ar de ser muito mal pago para a função. Ouviu o responsável da ARS congratular-se com a eficácia daquela operação sanitária. "Há que olhar para os aspectos positivos e não mostrar só desgraças", afirmou o senhor, em diálogo com alguns de nós, já estava o jovem repórter à distância.

Logo se levantaram vozes a  estabelecer o contraditório: que nem tudo tem corrido bem, etc. E não faltou quem comunicasse que não queria ser exibido na televisão. "Descansem que o direito à privacidade é salvaguardado", tranquilizou o funcionário. De facto, levamos a pica em condições que respeitam esse princípio.

Lá fiquei meia hora no recobro, como mandam as regras. Dão-nos um pacote com bolachinhas, uma peça de fruta, meio litro de água. Com os cumprimentos da Câmara Municipal de Lisboa, juntando o útil ao agradável em ano de eleições autárquicas. 

 

Enquanto aguardava o momento de sair, pensei nas vacinas que já levei na vida. Em miúdo, a da tosse convulsa, da pólio e do BCG - estas obrigatórias, para impedirem doenças sinistras que assombraram as gerações anteriores à minha: a tuberculose e a poliomielite. Também a do tétano, que convém receber de dez em dez anos. Já na adolescência, quando fiz a primeira viagem intercontinental, fui vacinado contra a cólera, a varíola (entretanto erradicada) e a febre amarela. Reincidi nesta última em viagens posteriores. E em dois Invernos mais recentes vacinei-me contra a gripe, numa época em que ela andava assanhada e ninguém usava máscara na via pública mesmo em tempo de epidemias respiratórias.

Quando éramos garotos, compáravamos as marcas das vacinas nos respectivos braços, como sucedâneos de medalhas conquistadas na guerra. Havia uma que os recém-nascidos recebiam no pé - lá fiquei com a cicatriz durante largos anos. Outra, já não me lembro qual, era administrada em gotas. 

Na hora da pica, no dispensário médico, formávamos filas para enfrentar a agulha. E ai de quem choramingasse ou gemesse ou chamasse pela mãe: era gozado à bruta pelos restantes e ainda podiam passar a chamar-lhe "maricas", sobretudo se também não costumasse jogar à bola no recreio.

 

Regressado mentalmente a esses tempos, foi com algum orgulho que confessei à enfermeira já ser veterano de muitas vacinas.

É para mim incompreensível a proliferação de tantos movimentos anti-vacina agora em voga por aí. Outro movimento de importação "amaricana", impulsionado por incontáveis tontos nas redes sociais.

Vem outra a caminho: recebi um cartão que funciona como convocatória para a segunda dose, em dia de Santo António. Fui bebendo a água ao longo do dia e comi as bolachinhas à hora do jantar. Não sei se a vacina produziu efeito: a verdade é que ainda não senti qualquer vontade de votar no doutor Medina. Resta aguardar pelas próximas 24 horas.

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