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Delito de Opinião

Quarentena na Quaresma

Cristina Torrão, 14.03.20

Muitas pessoas aproveitam a época da Quaresma para reflectir sobre a vida, ou fazer algum tipo de jejum, seja em relação ao álcool, a doces, a carne, ou até a andar de carro (pelo menos, na Alemanha). E eu acho curioso que tanta gente tenha de fazer quarentena, ou de prescindir de tanta coisa, precisamente durante a Quaresma.

 

Nunca soube bem se acredito em Deus. Mas, à medida que os anos passam, sinto cada vez mais necessidade de acreditar em alguma coisa que nos transcenda. E, em vez de ir procurar algo longe, porque não acreditar no Deus da minha tradição cristã? Porque uma coisa é certa: exista Deus, ou não, possuo uma admiração sem limites por Jesus Cristo, que acreditou poder-se melhorar a sociedade amando e praticando o bem. Pode ser utópico, mas eu, tal como Ele, gosto de acreditar que sim, que é possível.

Por isso, me pergunto se, com esta coisa do COVID-19 e das quarentenas em tempo de Quaresma, Deus nos quer mostrar alguma coisa. Por exemplo: como é difícil ter de prescindir da nossa vida quotidiana. Como é difícil prescindir dos nossos habituais contactos sociais, dos nossos encontros de família, das nossas idas ao restaurante, ou à discoteca, ou ao ginásio, ou a eventos, sejam musicais, sejam jogos de futebol; e, sim, até nos custa prescindir das nossas idas ao trabalho, que tantas vezes amaldiçoamos.

 

Muitas vezes nos perguntamos o que é a felicidade, o que significa ser feliz. Talvez procuremos e exijamos demais; talvez ser feliz signifique apenas ter saúde suficiente para podermos fazer a nossa vida normal.

 

Quando o meu avô materno morreu, a minha avó sentiu-se perdida, sem motivação para continuar a viver. Algo passageiro, pensámos nós. Mas uma doença de Parkinson acelerou a degradação psicológica e física. A minha avó nunca mais foi feliz, até à sua morte, quatro anos mais tarde.

É bem possível que, nos seus últimos dias, ela tenha pensado em tudo aquilo que lhe fugira e não mais voltaria a ter: recordações com o marido, os filhos, os netos… O certo é que, precisamente nessa altura, estando a minha mãe com ela, a minha avó se virou para a filha e expressou as seguintes palavras: «eu era tão feliz… e não sabia». A minha avó era analfabeta (aprendeu a ler e a escrever alguma coisa com o meu avô), mas disse uma das frases mais bonitas e profundas que jamais ouvi.

 

Talvez Deus nos queira pôr um travão, nesta nossa vida consumista e desenfreada, em que não pensamos no que fazemos a nós próprios, nem aos outros seres vivos, nem a este planeta que Ele nos deu de presente e que não hesitamos em maltratar. Talvez Deus nos queira pôr a reflectir, nos queira fazer ver que deixamos fugir a felicidade que possuímos como areia por entre os dedos. Talvez Ele nos queira mostrar que não há dinheiro que pague o contacto humano e a empatia. Talvez nos queira mostrar que somos mais felizes, quando damos um passeio a pé, sem pressas, observando o que existe à nossa volta, seja na natureza, seja na cidade, do que metermo-nos no carro a acelerar e a amaldiçoar tudo aquilo e todos aqueles que se nos metem à frente, mantendo a tensão arterial em valores perigosos. Talvez nos queira mostrar que, para comer uma simples bifana, ou uma salsicha, animais tiveram de morrer, depois de uma vida em sofrimento, e que devemos dar mais valor àquilo que temos no prato, não deitando nada para o lixo de ânimo leve.

 

Podem perguntar-me se, para nos pôr a reflectir sobre tudo isso, é necessário que morra gente infectada com o COVID-19. Não vos sei responder. Só me ocorre desejar que Deus vos mantenha saudáveis.

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