«Quantas mulheres já amou?»
Fala-se muito na degradação do jornalismo, e com bons fundamentos, mas convém relativizar um pouco: em todas as profissões e em todas as gerações existe gente desqualificada.
Ernest Hemingway foi jornalista na juventude e costumava dizer que este era o ofício ideal para um escritor, desde que não fosse exercido durante demasiado tempo. Assim sucedeu com ele: após meia dúzia de anos como repórter local e internacional, e correspondente europeu de jornais norte-americanos, passou a dedicar-se à literatura a tempo inteiro. E viria a dar raras entrevistas como escritor por ter conhecido entretanto demasiados jornalistas incultos, impreparados, incompetentes. Para ele havia vários temas proibidos: a guerra, a religião, os livros que estava a escrever, as mulheres com quem esteve casado e tudo quanto se relacionava com a sua vida privada.
No livro Papa Hemingway - A Personal Memoir, em que recorda década e meia de sólida amizade com o autor de Por Quem os Sinos Dobram, A. E. Hotchner relata uma dessas entrevistas, que deixou o escritor ainda com pior impressão dos jornalistas. Aconteceu no Verão de 1956, quando se encontrava hospedado num hotel de Madrid: ao passar pela recepção foi abordado por um repórter de uma revista alemã que, acompanhado por um fotógrafo, insistiu em falar com ele durante alguns minutos para «evitar ser despedido».
Hemingway, que naquele dia estava muito bem disposto, conduziu-o ao bar do hotel, onde decorreu a entrevista. Bastaram as primeiras perguntas para perceber que aquele alemão nada sabia a respeito dele: «Esta é a sua primeira visita a Espanha?» (o Nobel da Literatura visitara pela primeira vez o país em 1921); «Já tinha visto touradas?» (não só tinha visto como já tinha escrito dois livros e vários contos em torno deste tema); «Fala espanhol?» (qualquer elementar conhecedor da obra dele saberia que sim); «Escreve tudo por si ou dita os seus romances?» (bastaria esta pergunta, em circunstâncias normais, para o romancista pôr termo à conversa).
Era evidente que aquela entrevista iria acabar mal. Até porque o alemão, esgotado há muito o limite de dez minutos que o entrevistado lhe impusera, insistia em fazer-lhe perguntas cada vez mais idiotas. Levando Hemingway a responder-lhe num registo cada vez mais sarcástico.
O jornalista ia apontando minuciosamente num bloco de notas, incapaz de perceber esse registo:
- Quantas mulheres já amou?
- Pretas ou brancas?
- Bem... Quantas de cada?
- Dezassete pretas, catorze brancas.
- Quais prefere?
- Brancas no Inverno, pretas no Verão.
- O que pensa da morte?
- É mais uma puta.
A conversa ficou por ali: terminou pior do que começara. De todas as perguntas, anotou Hotchner, só à última Hemingway respondeu a sério. Porque era precisamente aquilo que pensava sobre a morte.
Nada que interessasse ao tal amanuense do jornalismo, incapaz de fazer uma entrevista inteligente a um dos gigantes da literatura do século XX que teve o privilégio de conhecer pessoalmente, desperdiçando por completo essa oportunidade.
Há gente assim em qualquer época e em qualquer lugar.