Quando Bergoglio se tornou Francisco
Faz amanhã dez anos, ao fim da tarde, Jorge Mario Bergoglio surgia no balcão da Basílica de São Pedro: o sucessor de Bento XVI era apresentado ao mundo. Escolheu Francisco como nome oficial de dirigente supremo da Igreja Católica e Chefe do Estado do Vaticano. Simplesmente Francisco, sem numeração romana - deixando antever que não haverá outro com o mesmo nome depois dele. Em homenagem explícita a São Francisco de Assis, apesar de ser jesuíta.
Foi o primeiro Papa não-europeu em 1200 anos. Oriundo do continente americano - concretamente da Argentina, onde anteriormente se distinguira como cardeal de Buenos Aires. Nascido numa família de imigrantes italianos, iguais a tantas outras que demandaram aquele país para fugirem à pobreza ancestral da terra-mãe.
Assomou ao balcão, onde uma multidão estava reunida a aplaudi-lo e vitoriá-lo. De braços caídos e um ar algo perplexo, como se ainda mal estivesse refeito do peso que lhe caíra em cima após a já histórica renúncia do antecessor, impensável num Papa dos tempos modernos.
Esteve uns momentos em silêncio, contemplando aquele vasto grupo de fiéis. Depois vimos-lhe o rosto a abrir-se num sorriso largo. Disse de si próprio ser alguém que «vinha de longe», como qualquer peregrino. E pediu, com inesperada humildade, que rezassem por ele. Que todos rezássemos por ele, em qualquer recanto do planeta.
Nascia ali o Francisco «pároco do mundo», como o designou a revista italiana Panorama numa feliz síntese do que tem sido o seu pontificado. Procurando seguir à letra, na sua acção pastoral, as palavras de Cristo no Sermão da Montanha: «Bem-aventurados os construtores da paz.» E as que ecoam há dois mil anos no Evangelho de Marcos: «Quem quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos.»
Quem não vive para servir, não serve para viver, como declarou em 2015 na visita pastoral a Cuba.
O mesmo Papa que Fátima já recebeu em 2017 e Lisboa se prepara para receber, de novo como peregrino, na Jornada Mundial da Juventude.
O mesmo Francisco que em Março de 2013 viu seis deputados do PS - Pedro Delgado Alves, Isabel Moreira, Elza Pais, Miguel Coelho, António Serrano e Mário Ruivo - juntarem-se a comunistas e bloquistas na recusa de um voto parlamentar pela sua eleição. Comprovando que o sectarismo e o extremismo podem irromper em qualquer bancada.
Trinta deputados no total - alguns revelando mais intolerância pelo representante máximo da religião com maior número de fiéis no globo do que pelo ditador da Coreia do Norte.
E o que dizia esse voto supostamente tão controverso? Apenas isto: «A Assembleia da República, reunida em sessão plenária, saúda o Estado do Vaticano, a Igreja Católica e todos os que professam a sua fé, pela eleição do novo Sumo Pontífice.»
«Mesmo para uma Europa desenvolvida e laica, o Papa Francisco é mais inspirador do que qualquer líder europeu», observou Teresa de Sousa no Público, naquele Março de 2013. Quando já era evidente o carisma de Bergoglio - evidente nos seus gestos despojados, no seu discurso claro, na sua capacidade de aproximação à pessoa mais comum. Dizendo que não há cristianismo sem comunidade, tal como não há paz sem fraternidade.
Com a força inequívoca do seu exemplo, digno de um genuíno discípulo de Jesus, Francisco inspirou e mobilizou crentes de todos os quadrantes geográficos nesta década do seu pontificado. E até muita gente que não partilha da sua fé.