Quando a Realidade se Cruza Com o Imaginário
Quando tinha a idade da minha filha Rita passava longas temporadas em casa da minha avó paterna. A minha avó era modista, proprietária e mestra da “Casa da Costura”, um estabelecimento reconhecido pelo esmero e rigor em prazos e pespontos.
Eu andava por ali, entre aprendizas e costureiras, a forrar botões, a arrumar carrinhos de linhas e a escolher restos de tecidos para fazer mantas para as bonecas.
Como era tagarela, gostava de me sentar num banco baixinho e meter-me em conversas muito compridas com as costureiras. Havia a Gigi, um amor de senhora que, por ter tido um problema qualquer na juventude, tinha ficado com um olho de vidro. E a Cristina, que me fazia ovos estrelados sem a ranhoca da clara por cima.
Naquela altura a minha mãe já tinha percebido que passear por um palco a fazer macacadas não era coisa que desse de comer a cinco filhos, de maneira que passava semanas fora a dar e receber formação para se reinventar noutra coisa qualquer.
Escrevia-me cartas e postais dos quatro cantos de Portugal e eu pedia à Gigi e à Cristina para as lerem muitas vezes e elas enganavam-se de propósito porque já sabiam que eu dava logo por isso. Riam-se muito quando as emendava e eu amuava.
A minha conversa preferida era sobre o Parque Eduardo VII. Passava tardes inteiras a pedir-lhes que me contassem como era. Onde ficava o lago dos patos, onde era melhor pousar uma toalha para um piquenique, qual a árvore que fazia a maior sombra ou como era o café onde se podiam comer Super-Maxis.
Para mim, o Parque Eduardo VII era um cenário mítico que não existia senão na minha imaginação. Uma espécie de jardim babilónico que idolatrava porque podia ser tudo aquilo que eu quisesse.
Um dia resolveram pedir licença a mestra Dorotheia para me levar lá. Fizeram-se grandes preparativos, muito zumzum à volta do grande dia, que roupa ia vestir, que eléctrico havíamos de apanhar, que gelado me iam oferecer, a que horas era a partida, eu sei lá.
No momento em que me vestiram o casaco de fazenda para sair porta fora, fui invadida por um pavor inexplicável e desatei num pranto tão aflitivo que se desistiu da epopeia. Era como se me estivessem a propôr a visita à caverna de um ogre.
Só hoje, e passados tantos anos, consigo perceber o fenómeno. É que quando nos atrevemos a cruzar as fronteiras do real com o imaginário, causamos danos irreparáveis.
E a mim, deram-me cabo do Parque Eduardo VII.