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Delito de Opinião

Publique-se a lenda

Luís Naves, 11.06.14

O consumidor de informação deve ter presente uma das melhores deixas do cinema, no final de O Homem que Matou Liberty Valance, de John Ford:

Segundo pensam os habitantes de uma pequena cidade do Oeste, um distinto senador interpretado por Jimmy Stewart matou anos antes, em duelo leal, um facínora chamado Liberty Valance. O filme começa quando este senador, já idoso, comparece no funeral de um homem praticamente anónimo cuja vida correu bastante mal. Este interesse desperta a curiosidade de um jornalista a quem a personagem de Jimmy Stewart decide contar a história autêntica, enquanto espera pelo comboio. No entanto, a história afasta-se de tal forma da narrativa conhecida, que o jornalista recusa publicar a verdade e esclarece:

“Isto é o Oeste, senador. Quando a lenda se transforma em facto, publique-se a lenda”.

 

Portugal está há três anos numa situação semelhante a esta. Os factos positivos são desvalorizados e os efeitos da pobreza crónica do País tendem a ser confundidos com a crise. Existe uma lenda conveniente que obriga à omissão das circunstâncias que nos levaram à falência e depois ao resgate. Essa lenda atribui todos os males a um governo incapaz, o actual, e não reconhece nenhum erro político anterior.

O resultado desta incapacidade de contar a verdadeira história é a crispação invulgar da política e a vertigem de querer repetir os erros que nos condenam ao endividamento insustentável e à baixa competitividade.

O episódio da Guarda, com a total falta de respeito pelo Presidente da República (dos mesmos hipócritas que espumam quando surgem críticas a decisões de juízes) é apenas outro sintoma de uma tontura política sem qualquer relação com eventuais desordens na sociedade. Isto é tudo artificial: pela cabeça do cidadão comum jamais passaria a ideia peregrina de continuar a protestar após a indisposição do Presidente.

As fantasias políticas e as zangas da treta vão desaparecer durante quatro meses. A partir dos próximos dias, o país só estará interessado no ludopédio, depois segue para banhos, regressando em Setembro. A crispação desaparecerá até do facebook, onde veremos sugestões dos melhores restaurantes e praias de Cancún. 

O que preocupa é o regresso do fim do mundo. Haverá então bom-senso para um acordo político entre os partidos? Será difícil, como explica Paulo Gorjão neste texto em Bloguítica. 

O Banco de Portugal divulgou entretanto números que deviam fazer pensar os mais excitados e os mais impacientes. Os próximos governos terão de continuar o ajustamento, cortando mais 6,7 mil milhões de euros, o que é pior do que eu admitia neste texto, onde não estava incluída a redução obrigatória da dívida pública. Cumprir o Tratado Orçamental só se conseguirá com crescimento económico (moderado até 2019) e com reformas adicionais, nomeadamente no sistema político, no Estado e na segurança social. Enfim, haverá sempre a hipótese de mais impostos, do segundo resgate ou ainda da saída do euro. Felizmente, há toda uma rica paleta de opções. 

Após três anos a ouvir a história do Homem que matou Liberty Valance, a opinião pública não aceita que a realidade seja bem diferente da lenda. Infelizmente, muitos intelectuais activos no espaço de comentário preferem fazer como o jornalista do velho Oeste.

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