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Delito de Opinião

Previsões meteorológicas

José Meireles Graça, 24.10.21

Se eu fosse, mas não sou, prudente, não diria nada sobre as negociações em torno do Orçamento porque como está com mais uns retoques pode ser aprovado, mas também pode ser reprovado, ninguém sabe que Orçamento será executado em caso de aprovação, a peça de teatro que se desenvolve no Parlamento é apenas uma parte do processo de aprovação ou reprovação e, verdadeiramente, o calculismo costiano e o do PCP e do PS é que são as pedras de toque do desenlace, não o Orçamento em si.

Este é mais uma centenice, ou marcelice se se quiser (a da evolução na continuidade que o padrinho cunhou, não dos balbuciares atarantados do afilhado), com um aluno, Leão, que apreendeu os truques e alçapões do mestre, Centeno, mas sem lhe herdar a, já de si não muito abundante, habilidade retórica. Quase ninguém tem muitas dúvidas de que o deslizar para os últimos lugares do desenvolvimento na Europa (que ela própria não cessa de perder lugares no mundo, uma decadência que é a consequência necessária do seu inverno demográfico associado à gestão socialista da UE), o avolumar da dívida cujo serviço explodirá no dia em que o BCE não puder mais sustentar os países do calote potencial, a exportação de trabalhadores adequadamente formados para enriquecer outras economias, a obesidade do Estado, que surge como regulador em todas as esquinas da vida, a fiscalidade demencial, o crescimento exangue e um longo e ominoso etc. – serão as heranças que deixará a bonomia de Costa e o seu cansado mantra das apostas na educação, na formação, na descarbonização, na economia circular, na promoção disto e daquilo, nas contas sãs (que interpreta como um equilíbrio falsificado para Comissão Europeia ver, enquanto vai deixando em ruínas o Estado Social e o SNS com o qual comprou, a crédito, votos), e no lero-lero de quanta tolice anda no ar da moda da gestão socialista.

Paulo Portas, que não consta tenha um par de asas nas costas, aventava que talvez o rotundo estadista tenha na ideia ir para eleições para não ter de as disputar noutra maré menos favorável, isto numa altura (Domingo passado) em que todo o analista garantia que o Orçamento passava.

Entretanto, o preço do combustível disparou e o eleitor mexe-se, incomodado. Há em Portugal bem mais de 5 milhões de automóveis ligeiros e por isso a retórica dos ricos que paguem a crise, desta vez, não cola, porque não há 5 milhões de ricos. Depois, começa a instalar-se a suspeita de que o optimismo militante de Marcelo, que toda a gente leva à conta de feitio, talvez seja defeito; e que a Oposição dita de direita, num ponto e noutro, terá alguma razão. Os preços nas praças e no supermercado estão-se a começar a mexer, e a paciência para a sofreguidão da famiglia socialista, sentada como em casa própria à mesa do Orçamento, está a erodir-se.

Daí que no Domingo passado tendesse a concordar com Portas, mas a novela grotesca em torno do preço do gasóleo (uau, o trabalhador vai receber, depois de um calvário burocrático, um reembolso de 5 Euros por mês, e a isto o jornalismo chama, sem se rir, uma medida) e a cabeça perdida de Costa, que passou a semana a espadeirar com uma lista repugnante de cedências a Catarina e ao bom do Jerónimo, convenceram-me do contrário: o homem não quer ir embora, porque não tem para onde ir, não quer eleições porque acha que não se consegue livrar da necessidade daquelas luminárias ancilares ainda mais esquerdosas do que ele, e não encara entendimentos com o PSD porque deixou passar essa oportunidade (talvez Rio seja o dirigente mais parecido com um socialista médio que o PSD alguma vez teve) e, de todo o modo, António Costa sempre foi um táctico brilhante mas tem um nucleozinho de convicções duras, e não particularmente lúcidas nem inteligentes, que consistem nisto: a esquerda é o que convém ao país, o PS o que convém à  esquerda, e a direita tolera-se em nome da democracia, que com ela, porém, fica em estado de intolerável imperfeição. O pobre homem reza a estas coisas.

Hoje, normalmente, o assunto já deveria estar encerrado. Não está porque comunistas lúcidos (são lúcidos no mesmo sentido em que há psicopatas com discursos coerentes) acham que* o negócio da troca do apoio por cedências no aparelho de Estado e na armadura legislativa está esgotado e teve um preço eleitoral demasiado alto. O muito que Costa já cedeu tem como limite as baias da tolerância europeia (o Orçamento deve dar a impressão de que a dívida se vai reduzir por via do crescimento) e a sua intuição de que uma capitulação total se voltaria contra ele. Como com menos consistência e mais lirismo o clube de frei Anacleto Louçã não navega em águas muito diferentes temos que o Orçamento não vai, provavelmente, passar.

Se não passar, aos actores políticos incharão as cordoveias do pescoço, de tanto gritarem, a classe jornalística esfarrapar-se-á em cenários e prognósticos e a opinião pública, pávida, será induzida a pensar que a inflação que regressa, o conflito social que se vai acentuar e o berreiro dos comunistas sem e dos com acne são consequência da instabilidade política, uma tese que o próprio Marcelo, com a sua característica curteza de vistas, decerto subscreverá.

Mas não são. Os governos pós-troica ocuparam-se a reverter o módico de reformas daquela época e a instalar um modelo de desenvolvimento (peço desculpa pela expressão) tributário do longo catálogo de patetices intervencionistas que os socialistas de todos os bordos subscrevem, no caso agravadas pelo contributo das excrescências venezuelanas do PCP e do Bloco. E não fora a UE e sobretudo O BCE o diabo, que tanta gente disse que ia chegar (e eu entre os mais) já cá estaria.

Já cá está, parece-me, mas ainda não se vê bem a sua cabeçorra hedionda. Se estiver enganado, porém, o futuro próximo também não será exaltante: é o progresso do retrocesso.

Razões pelas quais se o Orçamento passa ou não passa interessa pouco, excepto pelo facto de, se não passar, a gente se entreter com os paroxismos da luta política.

 

*Um amigo dilecto disponibilizou-me o artigo acima referido de Pedro Tadeu, porque da primeira vez que o vi tive acesso mas quando lá quis regressar o Diário de Notícias queria que me inscrevesse num tal de Nónio, decerto para me pôr a pagar – um escândalo. Quando mo enviou, escreveu: “O apoio parlamentar, neste caso ao orçamento, valeria a pena se o PC conseguisse convencer o seu eleitorado potencial de que conseguiu vitórias muito concretas ao impor ao PS as medidas x e y.  O problema é que essas vitórias são pífias, são mal comunicadas e ficam esquecidas dois dias depois, no turbilhão noticioso. Em última análise estão a apoiar o PS sem grandes ganhos. Mais valia ao PC, penso eu, tornar pública uma lista de exigências que vão ao encontro do seu eleitorado e estar pronto a votar contra se estas não forem aceites".

Tem razão. E só ponho aqui estas considerações porque ninguém do PCP decerto me lê, sendo como sou, tal como este amigo, um fascista do piorio.

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