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Delito de Opinião

Postais da Feira (1)

Pedro Correia, 08.06.19

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Mais acolhedora que nunca, excepto quando atravessamos o espaço Leya, rodeado de sensores que desatam a apitar à entrada e à saída já sem quase ninguém fazer caso. Prefiro sempre demorar-me pelos pequenos pavilhões, onde há menos aglomeração, muito menos "celebridades" e nula poluição sonora. Ali tratam os livros com justificada veneração e não como simples mercadoria.

Uma dessas tendinhas, a velha Minerva, tem um escaparate que me parece igual ao de décadas atrás, quando comecei a frequentar a Feira do Livro de Lisboa - então ainda com poiso na Avenida da Liberdade. Trago de lá O Homem do Braço de Ouro, de Nelson Algren - o romance que originou o célebre filme homónimo de Otto Preminger, protagonizado por Frank Sinatra. Literalmente em estado novo: tem as páginas por cortar.

«Dantes os livros eram assim para as pessoas ficarem com a certeza de que ainda não tinham sido lidos por ninguém», explica-me o senhor do pavilhão. Eu sorrio, por julgá-lo realmente convencido de que estava a dar-me uma novidade.

 

Fátima Lopes, a vedeta da televisão, exibe um magnífico bronzeado para impressionar basbaques que a apontam a dedo. Daniel Sampaio fala de psicologia infantil para um auditório muito atento. Jorge Silva Melo lê poemas de Sophia. Demoro-me a escutá-lo, com um fascínio antigo em dose dupla: por estes versos tocados de beleza intemporal e pela arte da declamação, apenas ao alcance de alguns eleitos.

Na primeira fila da assistência, Maria, filha mais velha da autora do vibrante Livro Sexto.  Folheei há dias uma biografia recém-surgida de Sophia, escrita em acordês e com pelo menos um erro de datação que logo detectei numa legenda. A biógrafa chama-lhe, cansativamente, «a poeta». Indigno-me com este absurdo banimento da palavra poetisa - sempre a associei a pitonisa - que alguns adoptaram, correndo desenfreados atrás da norma brasileira.

 

Este ano, na Feira, anda tudo muito "biológico" e "natural". Sugerem-me um copinho de chá gelado, infusão de ervas com "limão da Sicília" que acho refrescante. Mais adiante, um pacotinho com quatro cenouras, para roer, à Bugs Bunny: «Faz-lhe bem», garante-me a morena de sorriso rasgado. A avaliar por ela, deve fartar-se de comer cenoura.

O calor aperta, a sede desperta. Duas donzelas ali postas em desassossego queixam-se da «falta de consciência ambiental» da Câmara de Lisboa, que autoriza a venda ao público de água em garrafas de plástico. É a fruta da época: há dois anos andava tudo aos berros contra o eucalipto, este ano berra-se desalmadamente contra o plástico.

A meia-dúzia de passos há um bebedouro, daqueles antigos: dá-se à manivela e jorra água, fresca e reconfortante. Bebo com gosto e, tendo-lhes ouvido os insistentes queixumes, sugiro às donzelas esta tradicional maneira de matar a sede. Rejeitam, desdenhosas: «Água da torneira, nem pensar.» Volto a sorrir: eis desvendada a genuína «consciência ambiental» destas betinhas, prováveis votantes do PAN.

 

E o que trago de três incursões já consumadas às alamedas do Parque?

Um Amor Feliz, romance único de David Mourão-Ferreira, autor que hoje só encontramos entre alfarrábios: foi banido, tal como a bela palavra poetisa. Como sucedeu com outros escritores de vetusta nomeada: basta lembrar Luís de Sttau Monteiro, que desapareceu das estantes, talvez por ser politicamente incorrecto, sujeito ao apertado crivo do cânone actual.

Romances para ler não apenas nas férias que se aproximam mas durante o ano inteiro: Oficiais e Cavalheiros, de Evelyn Waugh; O Outro Eu, de Daphne du Maurier; Passa Lá um Rio, de Norman Maclean; Arquipélago, do Joel Neto (que está a dever-me um texto para o DELITO). Teatro: Pigmalião, de George Bernard Shaw. Poesia: Fósforos e Metal Sobre Imitação de Ser Humano, de Filipa Leal, que não se limita a escrever bem - é também uma excelente declamadora. Crónicas de Jorge Silva Melo (coincidência) reunidas na Cotovia sob um título feliz: A Mesa Está Posta. Espero que me dêem tanto prazer como me deu uma anterior recolha de textos dele, com a mesma chancela editorial: Século Passado.

Escrever bem, para mim, é isto.

 

Trago ainda, quase com júbilo clandestino, A Torre da Barbela, de Ruben A - outro autor que parece proscrito nestes dias em que meio mundo anda a roer cenouras biológicas, come "hamburgers" veganos, faz odes de louvor ao tofu e sorve infusões - mas sem a temível palhinha, também quase em vias de interdição.

Regresso do Parque Eduardo VII com uma mochila cheia de livros. E esta dúvida existencial: porque chamaremos "palhinha" a algo que não é feito de palha? Soa-me a burrice, mas nesta era de fervor animalista soa mal atribuir conotações depreciativas à bicharada. Se calhar até já com direito a coima. Vou calar-me: assim evito fazer figura de urso.

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