Porque silenciam as vítimas
Um padre brasileiro culpou a menina de dez anos, grávida de um tio, pelos abusos sexuais de que fora vítima desde os seis anos. O religioso escreveu em sua conta do Facebook que a criança “gosta de dar” e não é “inocente”, por ter aturado os abusos durante quatro anos.
Na verdade, muita gente culpa as vítimas de abusos sexuais precisamente por elas silenciarem o crime. Guardei um artigo publicado, no passado dia 31 de Maio, no Jornal Católico da diocese alemã de Hildesheim, por ele se debruçar precisamente sobre esta problemática. E, por ser uma questão que me revolta, devido à injustiça a ela associada, resolvi traduzi-lo. Foi escrito em colaboração com uma psicóloga de Hildesheim que se especializou em casos de violência contra crianças e jovens (incluindo o abuso sexual, também uma forma de violência), e fez parte do 3º número de uma revista dedicada à prevenção deste tipo de crimes. Essa revista é gratuitamente distribuída pelas paróquias, escolas e instituições com crianças e jovens a seu cargo.
Tradução:
«São vários os motivos que levam as pessoas a silenciarem crimes de violência sexual, ou a fazerem-no apenas passados muitos anos, ou, ainda, a fazerem-no de uma maneira que, à primeira vista, não combina com a intensidade do trauma. “Muitas falam tão friamente e com tanta distanciação sobre tais vivências, que se diria ter acontecido a outra pessoa”, diz a psicóloga Beate Neumann-Kumm. “Isto acontece porque elas afastam, de si próprias, as emoções relacionadas com a experiência traumática”.
No seu consultório de Hildesheim, a psicóloga já presenciou muitas formas de distanciamento. “Muitas vezes, as vítimas têm poucas recordações do acto, por, à altura, serem pequenas demais para avaliarem da sua realidade”. Falhas de memória, devido a experiências traumáticas, também são comuns e podem resumir-se a um curto espaço de tempo, ou abrangerem vários anos. “A psique”, diz Beate Neumann-Kumm, “apaga a luz, por assim dizer, respeitante àquela fase da vida”. Em contrapartida, procura uma compensação. “Quem não se lembra do que aconteceu, não consegue ocupar-se do trauma, a fim de o tentar superar. No entanto, o trauma, em si, provocado pela sensação de impotência e de desamparo, não desaparece, e a pessoa queixa-se frequentemente de vários sintomas, que podem passar por dores, ataques de medo ou pânico, depressão, etc.”. Por último, diz a psicóloga, existem aqueles que se lembram, mas que nada dizem, nem nunca se queixam. São os que, simplesmente, silenciam. “Evitam qualquer contacto com o assunto, apesar de o sofrimento ser enorme”.
Vergonha e sentimentos de culpa são os grandes responsáveis pelo silêncio. As estratégias do criminoso, meter medo e chantagens, atormentam a vítima. “As crianças enfrentam terríveis conflitos de lealdade, quando o, ou os, criminoso/s pertencem ao meio familiar. Elas receiam as consequências sociais, por exemplo, que a família se desmembre por sua causa. Receiam que sejam elas, no fim, as culpadas”. Também a credibilidade da criança é posta em causa. “Antigamente, no tempo da educação dura e violenta, raramente se acreditava numa criança, quando ela contava algo que os adultos consideravam impossível de acontecer, os chamados temas-tabu”. Neste aspecto, infelizmente, quase nada se modificou, apesar de, desde meados do século XX, se ter passado a considerar os Direitos da Criança. “Em casos destes, o sofrimento das crianças é ainda maior, são castigadas por mentirem, são isoladas e privadas de carinho”. Uma criança que se resolva a abrir com alguém próximo, a mãe, por exemplo, ou a avó, e esta duvide do seu relato, ou até a censure e castigue, fecha-se de vez. Beate Neumann-Kumm considera este um dos grandes motivos para o silêncio. “Normalmente, não há testemunhas dos abusos praticados. Então, a situação da vítima piora dramaticamente”. A censura é mais um trauma para a criança.
Mas também uma criança que silencie, fala à sua maneira, considera a psicóloga. Através de notória agressividade, por exemplo. Essa agressividade pode ser exercida sobre terceiros, mas também sobre elas próprias. “Essas crianças desenvolvem preferência por situações perigosas, ou roem as unhas, ou mutilam-se com lâminas e/ou facas; em jovens, sentem-se atraídos por drogas ou desenvolvem tendências suicidas”.
O debate sobre este assunto é importante para quebrar o silêncio [escusado será dizer que o contrário, ou seja, fazer de conta de que o problema não existe, contribui para que as vítimas se fechem ainda mais]. Quando a população se solidariza com as vítimas e se reclamam mudanças na lei, com castigos mais eficazes para os criminosos, é mais fácil para elas tomarem a iniciativa e revelarem o segredo que guardam dentro de si. Mesmo assim, trata-se de um processo muito custoso. “O processo de tomada de consciência da sua condição de vítima de um crime, permitir que suba à superfície aquilo que, durante anos, ou décadas, foi recalcado, é muito doloroso. Quando se faz luz nesse canto escuro da alma, é bom e importante saber que não se está sozinho”».