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Delito de Opinião

Porquê referendos?

João André, 28.06.16

Sei que vou ser atacado pelas minhas linhas seguintes. Em parte pela minha opinião e em parte por não ter talento suficiente para a explicar. Seja como fora, aqui segue.

 

Muitas respostas houve ao Brexit. Uma delas foi uma rejeição de referendos semelhantes por parte dos principais partidos de governo pela Europa fora. Muitas justificações foram sendo dadas para isso - conveniência, falta de necessidade, oportunidade, assunto já "referendado" por eleições gerais, etc - mas a figura do referendo, em si mesma, nunca foi contestada.

 

Não é essa em si a função do meu post, mas posso questionar de certa forma o referendo, pelo menos enquanto instrumento da democracia. Há países como a Suíça onde o referendo está tão institucionalizado que é parte da rotina. Outros há onde é tão excepcional que é feito apenas para questões socialmente fracturantes (como em Portugal). Vale a pena no entanto perguntar qual o objectivo de referendos.

 

O referendo em si tem uma vantagem que é também um problema: pede uma resposta (habitualmente) binária - sim ou não - a uma pergunta que é quase certamente extremamente complexa. O voto da passada quinta-feira no Reino Unido não era um voto por permanecer na, ou sair da, União Europeia. Era um voto que decidia a liberdade de movimentos de pessoas e bens, decidia a contribuição ou não para um orçamento comunitário, decidia o destino de milhares de pequenos regulamentos desde embalagens de ovos às etiquetas em garrafas de água. Foi no entanto um momento em que o voto foi simplificado pelos proponentes dos dois lados. Ficar ou sair. Partilhar ou ser independente. Aceeitar fluxos migratórios ou rejeitar imigração. Ser europeu ou britânico.

 

Importa que a discussão tenha sido feita da forma mais básica possível e que do lado do Leave as opiniões dos especialistas tenha sido não só ignorada como completamente desdenhada. É um efeito curioso da acessibilidade da informação que as pessoas queiram cada vez menos da mesma. Os votantes Leave que hoje se arrependem do seu voto são aqueles que não quiseram ouvir opiniões e votaram com as suas entranhas (guts no original). Não estão sós nisso. Em Portugal ouvi muitos votantes contra o casamento homossexual ou aborto dizer que nada tinham contra as pessoas em si, mas não gostavam dos mesmos e por isso votavam contra. Era uma reacção visceral e pouco pensada e/ou informada.

 

Uma questão semelhante poderia ser levantada em relação a alguns dos principais progressos do passado. Teriam os homens votado a favor do voto feminino se chamados a pronunciar-se? Teríamos acabado com a escravatura (os países que o fizeram) se esta tivesse ido a referendo? Teriam os estados do sul aceite uma imposição referendária federal nos EUA para acabar com as leis Jim Crow?

 

Poucas pessoas conseguirão argumentar de forma minimamente convincente que a UE (ou os seus antecessores) não é responsável pelo mais longo período de paz na Europa. Teria esta organização saído sequer do papel se a CECA fosse a referendo em França? Teria o Tratado de Roma sido aceite? Creio que não: o ressentimento popular contra a Alemanha seria ainda demasiado forte para França ou Holanda aceitarem tais compromissos. Muitos outros exemplos poderiam ser dados ainda sem chegar a 1992.

 

Poderia mesmo perguntar-se se a resposta não seria um rotundo "Não!" no caso de a pergunta ser feita hoje, décadas depois dos benefícios desses tratados e alianças serem sentidos. Há um hábito de falar no "eleitorado" como se fosse um corpo orgânico, capaz de uma mente colectiva de onde os resultados chegam como mensagens. No entanto cada eleitor vota sozinho, na solidão da sua cabine e pode mudar o sentido de voto decidido desde há semanas com base numa pulsão do momento. Não serão muitos a fazê-lo, mas num voto apertado, podem ser suficientes.

 

Vale então a pena perguntar: queremos mesmo fazer perguntas tão decisivas sobre o sistema político ou sobre direitos sociais num referendo? Não será melhor entregar essas decisões aos nossos representates, os quais discutem os assuntos, auscultam (ou deveriam fazê-lo) os seus eleitores, trazem o debate de forma progressiva para a arena pública e evitam que argumentos simplistas contaminem a discussão? Em alternativa, se preferirmos o referendo, não seria melhor banalizar de tal forma o referendo que este se tornasse quase incontaminável? Se perguntarmos tudo, desde a cor das matrículas ao teor de sal nos pães, os eleitores acabarão por se tornar mais impermeáveis a argumentos populistas.

 

Gostaria que assim fosse, mas o exemplo suíço, com os seus votos contra a construção de minaretes (quando o país tinha apenas meia-dúzia) ou para limitar a liberdade de movimentos de cidadãos estrangeiros (directamente afectando as relações económicas com a UE) apontam para o quanto é fácil influenciar certos referendos usando simples argumentos que apelam aos medos dos eleitores. Não quero com isto dizer que esses medos não devem ser considerados, apenas que não devem dominar uma decisão como provavelmente o fizeram.

 

Quem defende o referendo fá-lo de forma sincera argumentando, com bastante lógica, que será a forma mais pura de democracia. Infelizmente, quando a resposta é para aceitar ou rejeitar, deixam de existir zonas intermédias. A política é a arte do possível, não uma ciência exacta. Uma mudança política ou social é um acto eminentemente político, mesmo que tomado pela população em geral. Como tal não deve ser tomada usando linhas vermelhas e fronteiras inamovíveis. É no entanto este o território dos referendos.

 

Pode sempre argumentar-se que o resultado de um referendo pode sempre ser colocado em causa por outro, mas para tal entramos novamente no território da política, da arte do possível. O referendo deixa de ser um instrumento de democracia, por falho que seja, para ser um instrumento de manipulação por parte dos políticos. Um referendo é então repetido as vezes que forem necessárias até se obter o resultado desejado. Na melhor das hipóteses torna-se uma consulta, onde os resultados levam a uma mudança na pergunta ou nas condições oferecidas. Na pior torna-se uma farsa.

 

O referendo britânico de quinta-feira não era vinculativo, mas David Cameron, o primeiro-ministro demissionário disse desde o início que o aceitaria, independentemente do resultado. Há no entanto já quem defenda que, na ausência de uma constituição que consolide o resultado, uma eleição geral que desse a vitória a um partido eleito numa plataforma clara de permanência na UE seria o suficiente para anular o resultado.

 

Pessoalmente não gosto da figura de referendos enquanto instrumentos vinculativos. Poderão ser usados como consultas populares, mas mesmo nesse caso seria difícil a um governo (ou parlamento) seguir em direcção oposta à do resultado de tal consulta. Prefiro claramente uma evolução lenta, onde após cada pequena alteração o sentimento público seja auscultado e potenciais passos seguintes acelerados ou atrasados. A maior parte dos grandes avanços políticos e sociais foram resultado de tais acções e raramente de verdadeiras revoluções. Mesmo o principal avanço político moderno, na forma do governo dos EUA, foi proposto por um grupo de homens sem qualquer vontade de pedir a opinião da população que seria afectada pelas suas decisões.

 

Claro que cada povo deve ter liberdade de seguir o caminho que entender, mesmo que isso implique um retrocesso (cada pessoa que veja um retrocesso como entenda). Só que um referendo tem frequentemente o efeito de dar um peso extra a uma decisão. Esta fica escrita em pedra mais facilmente num referendo, o resultado do qual não pode ser facilmente alterado, do que numa eleição geral, onde os representantes por vezes acabam por tomar decisões em direcções opostas àquelas das plataformas em que foram eleitos.

 

Escrevi que não pretendo contestar em si o instrumento do referendo, antes questionar o seu objectivo. Torna-se claro que o considero pouco útil, mas o meu post não é um apelo à sua rejeição, antes a que ele seja por outros questionado de forma real, mesmo que cheguem à conclusão oposta à minha. Haverá quem me acuse de propôr elitismo e não querer ouvir a população (já sei o que alguns me acusarão de ser...) mas não é essa a minha intenção. Existem mecanismos de auscultação das opiniões dos eleitores. Chamam-se eleições e temos diversas à escolha. Se queremos mais democracia, talvez devêssemos reformar o sistema político. Pedir referendos, a meu ver, não é entregar decisões aos eleitores: é um lavar de mãos dos políticos e permitir que os "argumentos" mais estridentes ganhem peso. A solução não é uma democracia binária. É uma democracia melhor.

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