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Delito de Opinião

Poitier e Bogdanovich: olhar e ver

Pedro Correia, 08.01.22

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                    Sidney Poitier (1927-2022)                                     Peter Bogdanovich (1939-2022)

 

Morreram dois gigantes do cinema. Um actor (também cineasta) e um realizador (também intérprete) que sempre considerei "muito cá de casa", para pedir emprestada uma expressão que João Bénard da Costa imortalizou nos seus magníficos ensaios sobre a Sétima Arte.

 

Sidney Poitier, falecido anteontem aos 94 anos, foi pioneiro ao quebrar as barreiras raciais numa América ainda segregada. Primeiro actor negro a receber o Óscar para melhor intérprete masculino em Hollywood - por Lírios do Campo, em 1963. Só 40 anos depois houve outro a conseguir o mesmo: Denzel Washington, galardoado pela sua actuação em Dia de Treino

Vi Poitier em vários filmes icónicos. Incluindo Sementes de Violência (Richard Brooks, 1955), ainda no início de uma carreira que se prolongou por meio século, No Calor da Noite (Norman Jewison, 1967) e Adivinha Quem Vem Jantar (Stanley Kramer, 1967), neste contracenando com dois nomes quase lendários da tela: Katharine Hepburn e Spencer Tracy. Sempre com a sua figura austera e elegante, exibindo serenidade.

 

Peter Bogdanovich, que morreu também quinta-feira, aos 82 anos, chegou a ser um dos meus realizadores favoritos. Por filmes como A Última Sessão (1971) e Lua de Papel (1973). Pertencia à geração de George Lucas, Martin Scorsese e Francis Ford Coppola, que sacudiu a poeira acumulada nos velhos estúdios da Califórnia, refrescando e revitalizando o cinema. Logo no seu filme de estreia, Alvos (1968), infelizmente pouco visto nos dias que correm.

Devo-lhe muito não apenas como espectador mas também como leitor. Porque alguns dos melhores textos sobre a Sétima Arte que conheço são dele, reunidos num excelente livro intitulado Pieces of Time, entre nós publicado na década de 80 sob o título Nacos de Tempo, reunindo crónicas e ensaios inseridos originalmente na revista EsquireÉ uma das obras que mais vezes reli. 

 

Nestes tempos destituídos de memória, cheios de celebridades instantâneas que se sucedem à cadência das estações do ano, muita gente não faz a menor ideia quem foram Poitier e Bogdanovich. Ainda em vida, já tinham sido arrumados no sótão das antiguidades. E os filmes a que estão associados tornaram-se em larga medida invisíveis por expiarem um pecado contemporâneo: pertencem a um século que já passou. Não são blockbusters, não induzem ao consumo de pipocas.

Bogdanovich, sobretudo, ensinou-me a diferença entre olhar e ver quando se trata de cinema. Ao recordar, naquela colectânea, cenas dos seus filmes favoritos - que também se tornaram meus.

Por exemplo, em Rio Bravo (Howard Hawks, 1959). John Wayne desce as escadas do gabinete do xerife e dirige-se a uns homens que o procuram. O actor é filmado de trás naquele seu característico jeito de andar, lento e oscilante, enquanto a imagem se suspende por instantes para melhor nos envolver no que ali se passa. Quase sem percebermos, tornamo-nos cúmplices de Wayne, «figura familiar, clássica - inconfundível seja qual for o ângulo - que se move num mundo de ilusão que conquistou em absoluto».

 

É isto o cinema, tão sério como a vida. Por ser indissociável dela.

 

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