Pioneiro na democracia e no jornalismo
Na morte de Francisco Pinto Balsemão (1937-2025)

Francisco Pinto Balsemão, falecido na noite de anteontem com 88 anos, era um dos escassos sobreviventes daquele tempo pioneiro em que se instaurou a democracia em Portugal. A democracia genuína, não o regime censitário da monarquia constitucional nem a caótica década e meia da ilusória "aurora republicana" de 1910. Como fundador do PSD - então crismado Partido Popular Democrático - de que era militante n.º 1, integrou o núcleo de protagonistas daquela irrepetível era iniciada com a Revolução dos Cravos e que teve como marco essencial a Constituição, prestes a completar meio século de existência.
A importância de Balsemão começara ainda antes do 25 de Abril como administrador de jornais, sendo ele próprio jornalista. Ao transformar o Diário Popular num periódico ousado e de grande audiência no crepúsculo do salazarismo e sobretudo a partir de 1972, ao preparar a fundação do Expresso, cujo primeiro número surgiu em 6 de Janeiro de 1973, prenunciando a derrocada do Estado Novo e a instauração do liberalismo político que aqui chegou com décadas de atraso.
Hoje, aos olhos de muitos, parece ter sido um percurso linear. Nada mais equívoco. Balsemão acreditou nas promessas liberalizantes de Marcello Caetano, que fora seu professor na Faculdade de Direito de Lisboa, e aceitou integrar - como independente - as listas da União Nacional em 1969. Mas o jogo estava viciado - desde a escassa dimensão do universo eleitoral até à impossibilidade de fiscalização real dos votos pela oposição, passando pelas fortes restrições à liberdade de associação e reunião. Sem esquecer o papel castrador da censura à imprensa.
A Primavera virou Inverno. Balsemão e os restantes membros da Ala Liberal nesse falso parlamento que integrava 100 por cento de eleitos pela UN (Sá Carneiro, Magalhães Mota, Miller Guerra, José Pinto Leite, Mota Amaral, Raquel Ribeiro, Correia da Cunha, Pinto Machado e alguns outros) distanciaram-se do sucessor de Salazar, que se limitara a introduzir medidas de cosmética - a PIDE passou a designar-se Direcção-Geral de Segurança, a Censura derivou para Exame Prémio, a anacrónica UN deu lugar à Acção Nacional Popular - produto igual com rótulo novo.
A guerra sem solução política à vista nos três palcos africanos paralisava o regime e condenou-o à extinção.
Seguiram-se outros desafios, com novas frentes de combate. Balsemão resistiu quando, no frenesim revolucionário, o Expresso chegou a ser rotulado de «voz do fascismo»: foi essencial a luta que travou pela liberdade de imprensa recorrendo até aos seus numerosos contactos internacionais. Como também marcou o País pela legislação que regulou o sector da informação - e que, no essencial, subsiste nos dias de hoje.
Sem esquecer a sua acção como deputado constituinte, eleito naquela gloriosa jornada libertadora de Abril de 1975 em que pela primeira vez todos os portugueses maiores de 21 anos puderam ir a votos. Foi vice-presidente da Assembleia Constituinte. Manteve sólida parceria com Francisco Sá Carneiro no partido e mais tarde, naquele efémero Governo que durou de 3 de Janeiro a 4 de Dezembro de 1980.
Num país em choque pelo desaparecimento simultâneo do primeiro-ministro e do ministro da Defesa, Amaro da Costa, na queda da fatídica avioneta em Camarate, foi Balsemão quem pegou no leme: era o sucessor natural de Sá Carneiro no PSD e no Executivo. O Expresso ficara confiado a Marcelo Rebelo de Sousa: nenhum outro jornal criticou então tanto o Governo.
Era um teste decisivo ao fair play democrático do seu fundador. Superado com distinção.
Permaneceu cerca de dois anos e meio à frente do Executivo - até Junho de 1983. Tempo suficiente para ficar ligado a dois marcos essenciais: a revisão constitucional de 1982, que extinguiu o Conselho da Revolução, último resquício de tutela militar num regime que só a partir daí adoptou a matriz civilista integral das democracias ocidentais. Nascia o Tribunal Constitucional, consolidava-se a divisão de poderes no Estado, deram-se passos decisivos rumo à economia de mercado que a revisão de 1989 iria acentuar.
Foi também um período decisivo para a futura adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia graças à acção de ministros como o titular dos Negócios Estrangeiros, André Gonçalves Pereira, e o da Integração Europeia, Álvaro Barreto.
Com Balsemão a liderar o processo.
Era um senador da república. Chegou a alimentar ambições presidenciais, mas Cavaco Silva cortou-lhe duas vezes o passo: primeiro em 1996 (quando perdeu para Jorge Sampaio), depois em 2006 (quando derrotou Manuel Alegre e Mário Soares).
Ocupava há 20 anos um merecido assento no Conselho de Estado.
Mas foi mesmo no jornalismo que a sua acção se revelou fundamental. Após ter fundado o primeiro semanário português com figurino internacional, voltou a ser pioneiro ao lançar o primeiro canal privado de televisão a nível nacional: a SIC, cuja emissão inaugural ocorreu a 6 de Outubro de 1992. Em Janeiro de 2002 iniciaram-se as emissões regulares da SIC Notícias, primeiro canal televisivo noticioso a transmitir 24 horas.
«Tinha a elegância do risco», como acertadamente observou Rui Moreira em reacção ao seu falecimento. Também nisto protagonizou tempos irrepetíveis. Tempos em que os grupos informativos se algutinavam em torno de um clã familiar e mantinham como líder de referência alguém com manifesta paixão pelo jornalismo.
Com a morte de Balsemão, também isto desaparece: na década e meia mais recente, a paisagem mediática transfigurou-se tanto ou mais do que a paisagem política.
Tanta coisa se perdeu pelo caminho - desde logo uma certa forma gentil, cordata e dialogante de assinalar presença no espaço público. A marca distintiva de Francisco José Pereira Pinto Balsemão.
Vivemos tempos diferentes. Poucos hoje arriscarão dizer que são melhores.
Leitura complementar: A arte de resistir à sedução do poder (16 de Setembro de 2021)

