Pequenas vaidades
Ao longo de muitos anos no jornalismo entrevistei líderes partidários, ministros, deputados, artistas, escritores, actores, prémios Nobéis, celebridades várias: Jorge Amado, Bjorn Borg, Peter Ustinov, Alvin Toffler, Fernando Arrabal, Ramos-Horta, José Saramago, Julião Sarmento - só para citar uns quantos. Tenho autógrafos concedidos em missão profissional por todos os jogadores da selecção portuguesa que ficou em terceiro lugar no Europeu de Futebol em 1984 (saravá, Rui Jordão!) e de Maurício de Sousa (sim, o criador da Mônica e do Cebolinha, uma simpatia de pessoa).
Nunca me envaideceu o convívio com gente que - para utilizar a bela expressão de Camões - se vai da lei da morte libertando. Nem as centenas de notícias que levei às primeiras páginas em onze jornais ou revistas. Nem os muitos "prémios cacha" que ganhei no Diário de Notícias quando era liderado por esse grande director (e um inesquecível ser humano) chamado Mário Bettencourt Resendes, tão cedo desaparecido. Sempre considerei cada momento desses como mais um dia no trabalho. "Business as usual", na sagaz e concisa fórmula norte-americana.
Mas confesso-vos uma pequena vaidade: ter o meu nome associado, enquanto jornalista, a dois restaurantes que muito prezo. O Poleiro, em Lisboa, e a Adega Vila Meã, no Porto. Lá estão, emoldurados nas paredes, textos meus alusivos a estas casas de bem-comer.
O da adega portuense, datado de 2019, só há pouco o vi, na minha mais recente visita à Invicta, era o primeiro sábado deste ano. Ia com vontade de matar saudades do cabrito assado no forno, mas já não constava do cardápio. Optei então pelos filetes de polvo com arroz do dito. Era dia de muita afluência, a hora já a pender para o tardio, diz-me a patroa que chegara ao fim. Expressei um lamento. Ela faz uma rápida incursão à cozinha e diz-me que ainda se arranja meia dose de meia dose. Mais que suficiente para mim. «Venha ela», ordenei.
Meia dose ali, como sabem os comensais, dá para encher o papo. E meia dose de meia dose, digo-vos eu agora, também. Voltei a fazer jus à fama e ao proveito do estabelecimento, ali tão discreto na baixa do Porto. Ao sair, descubro o meu texto já consagrado na parede, à vista de quem lá vai.
Sorri para dentro: eis talvez o único troféu que gosto de exibir na profissão.
É a hora de pagar, alguém avisa a patroa lá do fundo, na cozinha: «É a minha filha a dizer-me para não me esquecer de só lhe cobrar a meia dose da meia dose.»
Saravá, Adega. A partir de agora és um pouco minha também.