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Delito de Opinião

Pequena reflexão sobre descontentamento e pessimismo (2)

Luís Naves, 22.07.14

Crise nacional

A história do Kaiser e do seu chefe de Estado-maior contém lições que podem ser usadas na actualidade.

É difícil tentar remar contra uma corrente que nos empurra na direcção inversa. Nas sociedades em que se instalou o medo da mudança, isso é ainda mais difícil. Portugal vive um momento assim: perante uma transformação rápida, que exigiria uma resposta flexível, a sociedade portuguesa divide-se em conflitos inúteis, com as personagens entrincheiradas em becos sem saída. Querem melhor exemplo do que a história de hoje, em que nenhum dos lados tem razão? Um ministério convoca um exame de professores com antecedência demasiado curta, para não permitir o recurso aos tribunais (um governo com medo do estado de Direito?); os sindicatos respondem com tácticas de guerrilha que envergonham a classe dos professores. É isto a educação?  

A parte mais importante da crise nacional não é económica ou financeira, mas consiste num irresistível clima de pessimismo que se colou à sociedade portuguesa como se fosse uma doença de pele. Quando surge uma notícia, ela é repetida e dissecada apenas na sua pior vertente. Não admira que os comentadores, que erraram sistematicamente nos últimos três anos, continuem a prever o colapso na próxima semana. Talvez haja saída, talvez a situação não seja tão má, sugere alguém, mas há sempre um Von Moltke a garantir que o nosso destino trágico já foi traçado. É impossível mudar. 

 

No último ano, o desemprego baixou, o emprego está a aumentar, mas na cabeça dos portugueses a realidade é ao contrário. Terminámos um período de ajustamento imposto pelos credores que nos salvaram da bancarrota, mas perdeu-se a noção de que a alternativa ao resgate teria sido a situação da Argentina em 2001, com desemprego em massa, caos social e a democracia à beira do abismo. Nada disso, repetem os sábios, o que tivemos de fazer foi uma imensa estupidez, não foi imposto, foi insensato.

Há sectores inteiros da economia que rebentaram em Portugal (a comunicação social, por exemplo), mas a culpa é dos ‘cortes cegos’ e da ‘ausência de reformas’, sem lugar para erros de gestão, modelos falhados, mudanças tecnológicas, favores de estado, incompetência, perda de credibilidade, despesas insustentáveis ou falta de competição.

A corrente da opinião vai em sentido único: os erros vieram de fora.

Esta corrente é tão forte que, às vezes, penso estar a ver mal o filme. Quando as generalizações são desmentidas pela vida real, a opinião das pessoas devia mudar, mas a indignação inútil instalou-se no discurso; ela garante elogios, mesmo quando omite factos. Por outro lado, evitar a exaltação e a hipérbole assegura uma acusação de insensibilidade. E, no entanto, a vida de cada um devia guiar a percepção do real. Falo por mim: há quem não me atenda os telefonemas, tenho razões para sentir desgosto, mas bater com a cabeça na parede não adianta nada.

Dou outro exemplo: recorrendo às poupanças (comecei o ajustamento antes) e certo esforço, consegui recentemente ir ao casamento do meu irmão mais novo, que emigrou. Sobre o país onde ele vive, percebi que existia ali uma realidade diferente da que lia nos media nacionais e mais parecida com a reflectida nos jornais estrangeiros que consulto. Crise na Europa? Qual crise na Europa? Mas, confesso, estava mais preocupado com o reencontro familiar e dei comigo a pensar que o meu irmão é o mais rico da família; ele não saiu do país por causa desta crise, mas não tenho dúvidas de que se tivesse ficado por cá seria hoje o mais pobre da família.

Por tudo isto, não compreendo a tese de que a emigração é algo de negativo, não entendo os gritos de horror quando alguém diz que essa emigração pode ter uma vertente vantajosa, quanto mais não seja a das oportunidades que oferece aos que emigram e que aqui teriam menos perspectivas. Qual é o problema? O fenómeno apenas aproveita a mobilidade europeia, que infelizmente não existia na altura em que eu era jovem.

Portugal sempre foi um país exportador de mão-de-obra, como escape da nossa pobreza crónica. As elites nunca antes se preocuparam com isso, pois eram os menos qualificados a sair (a ralé). Nessa época, a emigração era ignorada, pois evitava que houvesse legiões de desocupados (ameaça de conflito) e, para mais, fornecia trabalhadores às empresas que exploravam o império. As elites nacionais, quando viajavam, tinham vergonha dos seus emigrantes. E os emigrantes traziam costumes diferentes. Muitas das mudanças sociais a que assisti na minha vida vieram desse choque cultural, que é ainda uma história por contar.

Escrevi pobreza crónica? Só pode ser erro meu. Os comentadores dizem que éramos ricos em 2011.

 

 

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