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Delito de Opinião

Pensar que há árvores que morrem para isto

Zélia Parreira, 03.04.21

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Estivesse eu numa Biblioteca que escolhe os livros que compra e esta questão nunca me atormentaria. Mas a Biblioteca onde trabalho é uma das dez instituições que recebe um exemplar de tudo o que é publicado em Portugal, graças à Lei do Depósito Legal.

 

Importa dizer que este privilégio me deixa – e aos meus leitores, certamente – muito feliz. Conseguimos disponibilizar conhecimento, informação, literatura a todos os que residem na nossa área de influência. No caso da Biblioteca de Évora, esta área abrange todo o país que se estende para cá do Tejo, uma vez que é a única biblioteca de depósito legal nesta região.

 

Como não há rosas sem espinhos, com o depósito legal vem uma série de livros que, sejamos francos e directos, nunca deveriam ter visto a cor da tinta. São, sobretudo, livros de autor, mas agora elevados a um patamar mais profissional. Em vez da boa e velha edição de autor, impressa na Gráfica local, os projectos editoriais são entregues a empresas de edição. Não confundir, por favor, com editoras, essas sim, empenhadas em fazer uma distinção qualitativa, embora mais frequentemente movidas por interesses económicos (se não for bom, não vende) do que para salvar a Humanidade do delírio de uma vida sem literatura. Também as há, e o caro Leitor seguramente conhecerá algumas, que privilegiam a qualidade e o orgulho no seu catálogo, mesmo que para isso seja preciso sacrificar o rendimento económico. Mas estas estão num patamar tão elevado em relação ao que nos traz aqui hoje, que vou deixá-las fora da conversa.

 

Foquemo-nos então nas empresas de edição. Comercializam um serviço, requerido pelo presumido Autor. Entre histórias de vida sofridas (ou talvez não) e produtos delirantes da imaginação, são propostas para edição. A empresa responde sempre que o livro tem potencial e envia um orçamento. Tudo é editável, desde que seja pago. Número mínimo de exemplares, com custo unitário de X, a que acresce custo de revisão, se o Autor o pretender; custo do desenho de capa, se o Autor preferir uma capa profissional; custo adicional do papel, se o Autor não quiser imprimir o livro de uma vida em papel reciclado de má qualidade. O Autor não quer. Já paga o que pode e o que não pode, para imprimir o livro, quando, ingenuamente, esperava obter receita da sua venda.

 

A propósito de venda, embora seja prometida a colocação em redes de livrarias e grandes cadeias como a FNAC ou a Bertrand, isso nunca chega a suceder. Na Fnac, na Bertrand e nas redes de livrarias já toda a gente conhece estas empresas e a qualidade habitualmente associada à sua “chancela”. De modo que o Autor acaba a vender os 500 exemplares que pagou para imprimir ao telefone, em mensagens privadas para todos os amigos e família. “Olha lá, sabias que publiquei um livro? Gostava que o lesses” e o livro aparece na semana seguinte na casa da vítima em segundo grau, precedido de um aviso de envio à cobrança.

 

Não, não é de gosto que vos falo. É de erros ortográficos, de todos os “á”, sem excepção, com acento agudo, de frases sem significado, de vírgulas entre o sujeito e o predicado, de um papel miserável e de capas feitas com fotografias retiradas da internet, de tipos de letra insuportáveis. É mau. É mau, mau, mau.

 

Na Biblioteca onde trabalho, e nas outras 10 em iguais circunstâncias, temos que receber estes livros, catalogá-los, etiquetá-los, arrumá-los em depósito para todo o sempre. Custos de tempo, de espaço e armazenamento. Só aqui, nesta Biblioteca, e descontando o que foi editado nos últimos 3 anos (devido às obras no edifício, suspendemos a recepção de depósito legal e só agora estamos a retomar) temos já 5890 títulos de uma destas empresas de edição. Se cada um destes títulos tiver 150 páginas (média calculada por baixo), temos quase 500 mil folhas de papel. E pensar que há arvores que morrem para isto.

4 comentários

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    Zélia Parreira 04.04.2021

    Pois é, embora eu prefira arial ou calibri. Mas há vários livros em comic sans. Ninguém merece.
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    V. 04.04.2021

    Sim ok, mas tanto o (ou a) Arial como o Calibri são tipos de letra desenhados especificamente para serem lidos num ecrã — o que significa que a relação entre mancha e espaço em branco não são as ideais para corpos de texto impresso e a ausência de serifas (aquelas pequenas bases nas "pernas" das letras que estabelecem uma linha horizontal invisível que estabiliza os olhos durante a leitura) resulta em maior dificuldade de concentração no texto e cansaço na vista.

    Além disto, não têm as mesmas propriedades de kerning (o espaço entre cada letra) e outros tipos de ajustamentos à página, o que faz com que nalgumas edições descuidadas quando o texto é colocado num certo tamanho as letras pareçam esborratadas e etc. Parecem bem nas impressoras em casa mas em edições mais exigentes esses tipos de letra não deveriam ser usados em edições em papel porque tem efectivamente menos qualidade do que outros desenhados para esse efeito. Um deles é o TNR. Garanto-lhe que lê 2 ou 3 vezes mais depressa e com mais conforto um texto longo em Times New Roman do que em Arial, por exemplo.

    A Arial, aliás, é uma versão para ecrã da Helvetica, que tem sido alvo de modas e manias recorrentes, mas não possui as mesmas qualidades da tipografia original. Parece, mas não é ;)
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    Zélia Parreira 04.04.2021

    Muito esclarecedor! Fui ler documentos em Arial e TNR e dou-lhe razão. Que pena não ter falado consigo antes de formatar a minha tese para impressão!
    Como, em trabalho, leio quase tudo em digital, nunca me tinha ocorrido (excepto a questão do kerning, que é mais evidente). Obrigada pela dica!
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