Quando era miuda, usava todos os sentidos para perceber o mundo. Era um mundo pleno de cor e luz, de odores naturais a azedas, a urtigas, a estevas e hortelã... bricava com pedras, terra, pauzinhos, flores e folhas, fascinantes texturas que percorria com a ponta dos dedos. A água , mesmo a do chafariz da Memória, era fresca e límpida e sabia mesmo a água. Quando se desligava a TV e o rádio, ouviamos os grilos e as cigarras e o céu parecia uma manta de veludo salpicada por milhares de borrifos brilhantes, onde descobríamos formas imaginárias e brincávamos ao adivinha qual... Nesta era de milagres do conhecimento, retrocedemos em tudo, principalmente na percepção que temos do que nos rodeia e que na maior parte da vezes se resume à tela que vibra de cor e de som. É na tela que actualizamos o conhecmento, que trabalhamos, socializamos e nos divertimos. Explicamos tudo com um link, aprendemos tudo num motor de busca. Percebemos o mundo ao alcance de um clique, tornamo-nos vassalos do feudo digital, alimentamo-nos da adicta transgénese dos leds com quem percorremos os electrizantes wormholes do nosso quotidiano. Vivemos em simbiose, não dos desliguem do carregador sem o powebank estar a mais de 70%. !!
Percebemos e continuamos a perceber o mundo com base em concepções virtuais. A virtualidade, pela idealização, acrescenta ao mundo a significância ao que não tem, nunca teve, significado. Uma rajada de vento é uma rajada de vento. Um golpe de chuva é apenas um golpe de chuva. Mas o poético da estação são os significados metafísicos que lhes damos. A chuva não será produto das amplitudes térmicas e saturações de humidade. Isso não seria suficiente, pois não a experimentamos assim. E o vento, sentimo-lo, não como um fenómeno físico, mas como uma melopeia divina. O mundo é assim representação.