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Delito de Opinião

Pedir desculpas pelo passado nacional

jpt, 12.10.21

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Há pouco mais de uma década o Presidente Cavaco Silva realizou uma visita de Estado a Moçambique. Como é prática nessas ocasiões fez-se acompanhar por uma alargada comitiva: políticos, empresários, quadros da administração pública, agentes de produção cultural. No vasto programa constava um colóquio na universidade na qual eu trabalhava, dedicado à importância da língua portuguesa, o qual contou com a participação de destacados intelectuais moçambicanos (alguns dos quais foram então condecorados) e portugueses. 

A actividade decorreu na ampla sala do centro cultural universitário, um antigo cine-teatro com largas centenas de lugares. Os professores haviam sido convidados, os alunos mobilizados, a sala estava apinhada. Eu sentei-me bem lá no fundo, para fruir descansadamente o meu uniforme de "jeans" puídos e polo desbotado. Um dos painéis constava de alocuções de escritores consagrados, locais e portugueses - estes ali pois inseridos na comitiva oficial da visita de Estado. E assim, porque isso aceitando e liberdades criativas à parte, surgiam assumindo um difuso papel de representantes da sua área laboral, por episódico que fosse esse seu encargo.

 

Chegada a sua vez de dissertar, um desses consagrados escritores pátrios anunciou à audiência o seu agrado por estar em África. Pois, detalhou, sendo ele um escritor que no seu labor muito aprecia romper com as regras da língua estava entusiasmado por se encontrar entre africanos, e na terra destes, pois as suas línguas estão desprovidas de regras. Uma condição virtuosa, deixou explícito. E continuou naquilo que tinha para dizer, ao que se lhe sucederam as arengas de outros participantes. Terminado o ror de comunicações abriu-se o consuetudinário "espaço de diálogo", dedicado às perguntas oriundas da plebeia assistência. Instalou-se o tradicional silêncio, dada a provável exaustão dos seniores presentes e a timidez, até receosa, dos juniores diante de tamanhos protocolos ali patenteados.

Por isso, lá bem do fundo da sala e qual navio quebra-gelo, como se costumam auto-justificar os primeiros intervenientes destas ocasiões aquando das suas pálidas perguntas, aproveitei a ocasião. É que na sala estavam vários feixes de jovens que já me haviam sofrido como docente o que me fez sentir, talvez estuporadamente, alguma responsabilidade, uma espécie de fervor deontológico, por assim dizer... E resmunguei qualquer coisa como, caramba, aparecer alguém em XXI a clamar que as línguas africanas não têm regras gramaticais é de bradar aos céus, será um apogeu da incultura em qualquer um mas inadmissível em que tem por trabalho a... escrita e a leitura.

Depois aconteceu um inexistente debate, brevíssimo como é sua natureza quando assim. Ao qual, para gáudio de todos, se sucedeu um aprazível beberete, juntando alunos, professores e convidados. Como sempre mergulhei, com a convicção da militância, no universo dos canapés, de chamuças e adjacentes fornido. Logo um ou dois compatriotas residentes me abordaram num até enfastiado "ó Zé Teixeira, também não precisavas de ter dito aquilo, cai mal numa sessão destas...", respondendo-lhes eu, com a massa crocante escapando-se-me entredentes, já beiços abaixo, "o homem está aqui em representação, nossa mesmo...", "não vou deixar que os alunos acreditem em tal coisa ou, pior, que os portugueses pensam assim...". Deste modo arisco escapado à sanção comunitária avancei em busca de quem me trocasse o vinho branco, acídulo em demasia, por uma singela 2M ou mesmo, utopia, um gin tónico. Para ser interrompido por três ou quatro colegas moçambicanos, cada um deles num "ainda bem que disseste algo, eu não ia dizer nada dado o contexto", do cerimonioso que era o dia. Enfim, escorropichado o tal vinho, talvez até a posterior cerveja se entretanto alcançada, que a tanto não me chega a memória, regressei ao lar ainda conjugal. Para ouvir um sorridente, mas talvez já então desalentado, "já sei que estiveste a desatinar"...

Vem-me esta recordação agora quando, uma década escorrida, vejo um tipo que aquando quarentão pensava com tamanho défice sobre o real circundante, e África em particular,  a surgir na capa das revistas generalistas entoando o trinado da moda, o pimba do "Desculpa África" em ritmo extended version, meneando-se ao que julga ser o agrado da plateia. Deixemo-nos de coisas, pode ser que seja um bom ficcionista, não sei, nunca o li. Mas se assim for este é mesmo um caso de "quem te manda a ti, rabequista, remendar sapatos". Ou não o é (repito, não sei, nunca o li). E então será caso de usar o dito original... Enfim, o homem que conte as histórias que tem para contar, que é tarefa mais do que digna. E deixe-se de querer ser intelectual maître à penser, que não tem arcaboiço para tal.

Não me alongarei - mais uma vez - sobre esta gemebunda "desculpabilização" tão em moda entre tantos. Apenas repito o que ciclicamente vou metendo sobre estas pobres mentes de atrevidas gentes: 

"... a disposição mental que leva ao conto de fadas é a da moral ingénua, isto é, a moral que se exerce sobre os acontecimentos e não sobre os comportamentos, a moral que sofre e rejeita a injustiça dos factos, a tragicidade da vida, e constrói um universo em que a cada injustiça corresponde uma reparação." (Italo Calvino, Sobre o Conto de Fadas, Teorema, p. 100).

 

 

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