Patagónia, terra de contrastes - parte 1
É longa a viagem até ao fim do mundo. Em linha recta seriam menos de 12 mil quilómetros, mas na vida real o percurso entre o nosso pequeno rectângulo europeu e o extremo sul do continente americano implica três voos e muitas, muitas horas. Quando – finalmente! – o avião que nos trazia de Buenos Aires reduziu a altitude para aterrar em Ushuaia, sobrevoando montanhas coroadas de neve e ilhas que mais pareciam borrões de tinta sobre água azul-chumbo, sentia-me ao mesmo tempo aliviada por chegar, expectante pelo que antevia, e assombrada com o que já estava a ver. Era o início de uma viagem pelo sul da Patagónia, e tinha decidido começá-la na cidade que se autodenomina “fim do mundo”.
Onde a terra acaba
Ushuaia é cidade argentina e fica na Ilha Grande da Terra do Fogo, à beira do Canal Beagle, onde a fronteira com o Chile faz um ângulo abrupto de 90 graus para norte, prolongando-se em linha absolutamente recta até à costa setentrional da ilha. Este limite artificial, estabelecido pelo Tratado de 1881 entre os dois países vizinhos, isolou a Terra do Fogo argentina do resto do país: é impossível lá chegar por via rodoviária sem passar pelo Chile, e é por isso que grande parte dos visitantes da cidade chega e parte de avião. No nosso caso, aplicava-se apenas a primeira parte. A saída ia ser de autocarro, e este iria continuar a ser o nosso modo de locomoção durante o resto da viagem até à hora de regressar a Buenos Aires para depois voltar a casa.
Começar em Ushuaia um périplo de quase três semanas pelo sul da Patagónia revelou-se uma boa decisão. Cidade mestiça, cruzamento de aldeia alpina com localidade nórdica, temperada com pitadas de tropicalidade sul-americana, a sua atmosfera meio sonolenta foi ideal para me acostumar à temperatura (baixa, mesmo na Primavera), ao castelhano em que o “ll” soa a “g” ou “ch”, mas nunca a “lh”, ao câmbio de milhares de pesos traduzidos em poucos euros. Percebi que sermos cumprimentadas com um “Hola chicas!” é sinal seguro de simpatia, e que por aqueles lados as tradicionais empanadas foram elevadas à categoria de delícia de comer e chorar por mais. Passeámos com vagar pela avenida marginal e pelas ruas geometricamente desenhadas, onde o kitsch comercial predomina e harmonia arquitectónica é conceito desconhecido: cada edifício tem o seu estilo, muitos a penderem para o vanguardista desinspirado, cada casa parece ter sido propositadamente construída para contrastar com as vizinhas, e grande parte delas têm ar de pré-fabricadas. Visitámos o antigo Presídio, agora transformado em complexo museológico com entradas pagas a preço inflacionado para turistas, e subimos a escadaria-passadiço do Paseo del Centenario, o melhor miradouro sobre a cidade e a baía. Ambientei-me.
Ushuaia significa também a oportunidade de ver pinguins no seu habitat natural, mas para isso há que fazer um passeio de barco no Canal Beagle até à Isla Martillo, a que informalmente chamam Pingüinera. É aqui que, nos meses do Verão austral, se instalam três espécies diferentes de pinguins com um único propósito: nidificar. Os mais abundantes são os pinguins-gentoo e os pinguins-de-magalhães, mas em anos recentes têm também aparecido pinguins-rei. A ilha está classificada como reserva natural, por isso nos passeios mais comuns, como o que fizemos, a embarcação apenas se aproxima da praia e vemos os pinguins à distância – suficiente para os observarmos em idas e vindas no seu habitual passo oscilante, mais engraçados ainda quando se enchem de pressa e aceleram, com as asas meio abertas em jeito de corcunda. Independentemente disso, qualquer passeio no Canal Beagle é um festim para os olhos, sobretudo se tiverem a sorte que tivemos: depois de um amanhecer cinzento, um dia de sol aberto que fazia brilhar a água e a neve espalhada nos cumes das montanhas.
Guardámos para o final o Parque Nacional Tierra del Fuego, cuja entrada fica a cerca de 20 km de Ushuaia, com várias ligações diárias em minibus. Nos seus quase 700 km2, este parque conjuga ambientes de montanha, de floresta andino-patagónica e aquáticos, numa variedade de cenários cruzados por trilhos pedestres na sua maioria fáceis de percorrer. Foi aqui que passámos o nosso último dia na Terra do Fogo argentina, caminhando em volta da Baía Lapataia e depois bosque adentro, tendo como banda sonora o rugido suave das árvores e o toc-toc ocasional de algum pica-pau. Frequentemente, uma mancha branca ou castanha com riscas negras mexia-se entre a vegetação ou atravessava-se no nosso caminho: o ganso-de-magalhães é a ave mais abundante por estes lados, tão comum que a sua imagem está no logótipo do parque. Piquenicámos com vista para a Laguna Verde na companhia de um falconídeo guloso, ao longe o fumo dos grelhadores do parque de campismo subia até se juntar à neblina ligeira que teimava em soltar-se das encostas. E foi a descansar à beira do Lago Acigami, água-espelho entre um corredor de montanhas, com o Cerro Cóndor ali ao lado, indiferente ao facto de ter uma fronteira a dividi-lo, que nos despedimos das terras argentinas do fim do mundo.
Terra de contrastes
A Patagónia, região que povoa abstractamente os sonhos de tanta gente, é uma área na América do Sul com cerca de 11 vezes o tamanho de Portugal, convencionalmente limitada a norte por Puerto Montt e o lago Todos Los Santos, no Chile, e pelos rios Colorado e Barrancas, na Argentina, estendendo-se até ao arquipélago da Terra do Fogo, no extremo sul do continente americano. Parte da Cordilheira dos Andes rasga-a de norte a sul, fazendo simultaneamente a divisão entre os dois países, com a Argentina a ocupar a maior fatia do território e só perdendo para o Chile mesmo quase na extremidade meridional, onde apenas conseguiu reclamar para si a ponta leste da Terra do Fogo. Esta separação geográfica resulta num contraste muito nítido no relevo da região patagónica em cada um dos países: o lado chileno é quase completamente composto por ilhas, muito recortadas e com relevo acidentado, tem vegetação abundante e alberga a maior parte do Campo de Gelo do Sul da Patagónia, a terceira maior área de gelo continental no nosso planeta; na sua parte argentina, o território é árido e plano, só variando na faixa junto aos Andes, onde as montanhas e os lagos glaciais modificam a paisagem.
Às seis horas de uma manhã fria, um minibus levou-nos até Rio Grande, 200 quilómetros feitos em quase três horas e meia através de nenhures, com apenas uma breve paragem em Tolhuin, a única localidade que atravessámos durante o percurso. No terminal rodoviário de Rio Grande houve que tratar das formalidades para mais tarde cruzar a fronteira sem sobressaltos: no Chile não é permitido entrar por via terrestre com nenhum tipo de comida que seja perecível a curto prazo. As sete horas e meia seguintes foram passadas num autocarro em nada diferente dos que nos levam pelas estradas portuguesas em trajectos bem menos longos. Não há ligação terrestre contínua, por isso a passagem do Estreito de Magalhães é feita num ferry, e a espera de vez para entrar na embarcação consumiu mais de duas horas. O destino? Punta Arenas, a capital da região mais meridional do Chile.
O contraste entre Ushuaia e Punta Arenas é flagrante, e têm apenas um pormenor em comum: ambas ficam junto ao mar. Mas enquanto o Canal Beagle é sereno e rodeado de montanhas, o Estreito de Magalhães é um mar amplo e sem margem oposta à vista, como os oceanos que une. Fundada em meados do século XIX para consolidar a presença chilena no Estreito – que na altura era a única ligação marítima entre os oceanos Atlântico e Pacífico e, portanto, uma via de grande importância para o comércio – Punta Arenas mostra, no seu centro histórico, a monumentalidade clássica da época. Passeando entre os edifícios de pedra decorados com arcos, volutas, motivos florais e ferros forjados, nas avenidas largas e arborizadas, ou no cemitério, onde o kitsch e os jazigos de mármore ornamentado coexistem pacificamente, senti-me como se estivesse numa qualquer localidade europeia, em vez de numa cidade isolada nos confins do continente americano, mais perto da Antártida do que de Santiago do Chile. Bons restaurantes e o melhor alojamento de toda a viagem – gerido com grande simpatia pelo Arturo, um professor apaixonado por Portugal que escolhia Mariza e Cesária Évora como música de fundo ao pequeno-almoço – também influenciaram a decisão de ficar em Punta Arenas mais um dia do que o previsto.
O arco-íris que nos saudou na tarde da chegada à cidade foi anúncio de bom tempo. Ainda assim, o vento não deu tréguas na viagem de barco que nos levou no dia seguinte à Isla Magdalena que, com a sua irmã menor de nome Marta, forma o Monumento Nacional Los Pinguinos. A ilha é protegida por ser o local no Chile mais importante para a nidificação dos pinguins-de-magalhães, e nela chegam a congregar-se mais de 200 mil indivíduos desta espécie. O desembarque é permitido nesta ilha, onde fizemos uma caminhada de cerca de uma hora com passagem pelo farol construído em inícios do século XX. O percurso está marcado por estacas e cordões, por isso conseguimos ver de perto os pinguins e as tocas em que fazem os ninhos. Como é óbvio, qualquer interacção com os animais é estritamente proibida.
Punta Arenas não foi o primeiro assentamento nesta região inóspita. Instruídos pelo presidente Manuel Bulnes para tomarem posse do Estreito de Magalhães, os primeiros colonos chilenos instalaram-se 52 km mais a sul e ergueram o Fuerte Bulnes em 1843. No entanto, as terríveis condições climatéricas do lugar levaram a que os seus habitantes resistissem apenas durante seis anos, após os quais decidiram abandonar o povoado e mudar para o local onde hoje se encontra a cidade. Para celebrar o centenário da criação dessa colónia, o forte foi reconstruído e classificado como sítio histórico-museológico, estando actualmente incluído no Parque del Estrecho. Além do Fuerte Bulnes, onde estão recriadas algumas construções que faziam parte do assentamento, a excursão guiada que nos levou nesta visita incluiu uma caminhada pelos dois percursos pedestres do parque, que são de baixa dificuldade e cheios de beleza. Um atravessa o Bosque del Viento, rico em flora endémica e árvores fascinantes. O outro percorre parte da península junto à costa, com vistas encantadoras sobre o Estreito de Magalhães e as ilhas e montanhas em volta.
Lagos e montanhas
A Ruta 9 liga Punta Arenas a Puerto Natales, as duas principais cidades do sul da Patagónia chilena. Nesta extensa fita de asfalto, rodeada de estepe acastanhada, deserta e só ocasionalmente interrompida por algum lago desinteressante, as curvas são tão largas que se tornam imperceptíveis, e a estrada assemelha-se a uma recta sem fim. Nestes percursos de autocarro pelo sul da Patagónia senti-me como se estivesse no faroeste norte-americano. Horas e mais horas de paisagem monótona, onde até os guanacos são raros e mal se adivinham ao longe, silhuetas escuras sob o brilho inclemente do sol. Felizmente, a viagem até Puerto Natales foi bem mais curta e menos cansativa do que a anterior: apenas três horas e meia.
A primeira impressão que tive da cidade não foi das melhores, e não se modificou grandemente nos dias seguintes. Aliás, e pese embora tenha mais de 20 mil habitantes, chamar-lhe cidade é quase um eufemismo. Puerto Natales tem ar de aldeia – uma aldeia grande, feita à pressa e largada antes de estar pronta. As ruas são linhas rectas, sobrevoadas por centenas de fios emaranhados entre postes e limitadas por casas baixas, com telhados achatados e na sua maioria de aspecto meio provisório. Vêem-se poucas pessoas, árvores ainda menos, e os carros são inúmeros mas estão, misteriosamente, quase todos parados. À beira do golfo Almirante Montt e com os Andes como cenário, a zona da marginal poderia ter um ambiente menos mortiço, mas não é o caso. Há mais pedra e cimento do que areia, os edifícios novos parecem algo deslocados do entorno, as esculturas espalhadas pela avenida não são particularmente atractivas (com excepção da “Amores de Viento”, que se tornou num dos ex libris da cidade) e nem a água se mexe. Mesmo com sol, tudo parece congelado no tempo. Deste marasmo salvam-se algumas excepções, como o edifício do Espaço Cultural Nataris, na praça principal da cidade, que já foi Câmara Municipal e está desde há alguns anos convertido em centro de exposições e cultura.
Puerto Natales vive actualmente muito do facto de ser a porta de entrada para o Parque Nacional Torres del Paine – que, ainda assim, fica a mais de 100 km de distância. Os autocarros diários que fazem a ligação com o Parque vão cheios de mochileiros carregados com tendas, sacos-cama e outros apetrechos necessários para passarem vários dias nas montanhas a percorrerem os circuitos W (71 km em 5 dias) ou O (120 km, 8 dias). A nossa ideia inicial tinha sido visitar o Parque durante dois dias, mas os constrangimentos provocados por uma greve de trabalhadores (alguns trilhos e estradas estavam encerrados) e o preço exorbitante do catamarã que liga as margens leste e oeste do Lago Pehoé fizeram-nos mudar de ideias. Decidimos reduzir as nossas ambições a um único dia e ficarmos pela área da Estância Pudeto, para percorrer o trilho que passa pela cascata do Salto Grande e segue até ao Mirador Cuernos. Meio dia é suficiente para esta curta visita, mas vale a pena fazer o percurso com calma e piquenicar à beira do Lago Nordenskjold, que tem o nome do geólogo e explorador sueco que o descobriu em inícios do séc. XX. O local é de uma beleza natural mesmerizante, sobretudo pela cor turquesa das águas do lago, mais brilhante ainda em dia de muito sol. Do Mirador Cuernos avistam-se o Cerro Paine Grande e os Cuernos del Paine, duas montanhas icónicas do Parque – e este ficou, para mim, como um dos lugares mais memoráveis de toda a viagem.