Páscoa
Na passada Sexta-feira Santa teve lugar um Benfica-Porto, que a melhor equipa, previsivelmente, venceu.
Miguel Alçada Baptista veio dizer que não achava bem que o jogo tivesse tido lugar naquele dia, por um certo número de razões que enunciou e subscrevo.
Isto originou uma discussão cordata mas não insonsa, com dois campos bem definidos sem que em nenhum se visse a acrimónia e aversão que com facilidade se infiltram nestas conversas, e alguns argumentos bem esgrimidos sem preocupações de exaustividade nem pretensões culturais.
O argumento mais utilizado do lado dos que acharam muito bem que o jogo se realizasse foi o da quantidade: há mais, dizem, amantes de futebol do que católicos, ao menos dos que vão à missa; e como, do lado dos defensores da marcação do jogo para outro dia se invocam razões culturais mais do que religiosas, chamam a atenção para uma implícita superioridade, que não aceitam, de celebrações religiosas sobre efemérides cívicas.
Também lá fui deixar os meus três tostões, nos seguintes termos, e deixo para o fim uma consideração que, revendo os comentários, me ocorre:
Há muitos Portugueses (incluindo grande, senão a maior parte, dos que foram ver o jogo) que acham confusamente que o desrespeito pelas tradições católicas implica degradação de um dos elementos que constitui o nosso cimento de pertença ao mundo não-muçulmano, não-hindu, não-budista, etc., isto é, cristão. E é absolutamente impossível que o catolicismo, que sempre foi a religião dos nossos maiores, não faça parte da nossa identidade de Portugueses, nem que seja pela atávica compreensão de que algo liga o que somos ao que foram os nossos tetravós. Não é preciso ser crente para prestar alguma forma de vassalagem aos que o são, se não for por mais nada ao menos porque é uma tradição que não comprime seriamente nem a liberdade nem direitos de cidadania. Deixei de ser católico aos 13 anos e sou, tecnicamente, um agnóstico. Tenho um imenso respeito em abstracto pelo Povo a que pertenço, que todavia em concreto, através dos gostos, inclinações, convicções políticas e maneiras, detesto. A convicção religiosa, porém, está um tanto acima de outras, por ter a ver com a relação com a maneira de viver a vida e a forma como se encara a morte. Se dependesse de mim, é claro que não haveria jogo nenhum e não me passaria pela cabeça que isso implicasse um descaso dos que, como eu, vivem bem sem fé. E é claro também que este assunto não é redutível a argumentos estritamente lógicos porque ou temos um respeito instintivo pelo apelo que a maioria de nós sente por um conjunto organizado de crenças transcendentais ou não temos. Eu tenho.
Cabe perguntar donde vem alguma militância na negação do estatuto privilegiado da Igreja, mesmo para lá de alguns aspectos que a Concordata acolhe, e a meu ver tem isso a ver com a obsessão com a igualdade; com a consciência um tanto difusa, do compressor que a Igreja tradicionalmente foi da diferença – qualquer diferença espiritual e qualquer desvio nos costumes; e com o facto de, em numerosos aspectos, as posições oficiais da Igreja colidirem com uma parte das opções da contemporaneidade política, nossa e de outros no Ocidente.
É não compreender que a igualdade absoluta das instituições religiosas (a Constituição, quando a consagra, quer apenas preservar a liberdade de culto) colide com a nossa tradição e nos desarma perante religiões ou seitas que ocuparão os lugares deixados vagos; e que as Igrejas, todas e não apenas a Católica, têm posições sobre questões sociais, com a diferença de em muitas tais posições serem bem mais radicais, militantes e agressivas, além de alienígenas.
Tende portanto juízo. Um jogo de futebol, na ordem imanente das coisas, tem uma importância menor. E continuará a ter, por muitos milhões que julguem que o mundo gira à volta de uma bola ou, pior, em torno dos respectivos umbigos imaginariamente modernos e desempoeirados.