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Delito de Opinião

Para memória futura, continuação

Paulo Sousa, 28.01.21

Jovem do futuro,

Olá de novo, quero continuar a contar-te o que tem acontecido nestes dias da pandemia. Estamos agora no final de Janeiro de 2021.

Voltei a ler o que te escrevi em Setembro do ano passado e já sinto saudades daquele fim de Verão em que, mesmo indo de máscara para todo o lado, conseguimos ter alguma normalidade. Nessa altura ainda havia sol para ir à praia e chegamos a ir a restaurantes.

Quem teve dinheiro e tempo para isso, no Verão gozou férias. Muita gente, com receio de voltar a andar de avião, redescobriu Portugal. O turismo interno animou-se com turistas nacionais. Foi como um acto de introspecção dos portugueses, que redescobriram as suas próprias paisagens. Quando regressaram a casa, entenderam melhor o encanto que os estrangeiros sentem pelo nosso país. Sem este vírus aberrante isso não teria acontecido. E tão bonito que é o nosso território. Se fosse habitado por outro povo, não seria igual. Se somos parte do chão que pisamos, este chão também é o que é por causa daquilo que somos.

Houve dias de sol com brisas agradáveis. Quase que nem nos rimos quando os nossos governantes se vangloriaram pelo milagre e pela sorte de sermos governados por gente experiente. Graças a eles, disseram, e com o nosso apego à ordem, tudo tinha sido menos gravoso que noutras paragens.

Enquanto se bajulavam, inchados sob os holofotes, os virologistas alertavam que o pior estava ainda para vir. Enquanto noutros países se delineavam planos para o inverno, cá afirmava-se, insistia-se e repetia-se o desprezo oficial pelas estruturas privadas de saúde.

Depois das celebrações religiosas e festas populares terem sido proibidas, a festa dos comunistas na Atalaia reuniu várias dezenas de milhares de pessoas. Para lá chegarem os participantes atravessaram ruas e avenidas onde todo o comércio estava impedido de abrir a porta, para que a pandemia fosse travada. Os comunistas podiam ter aproveitado o ascendente de que gozavam sobre o governo para melhorar a vida dos portugueses, mas gastaram todo o capital político nesta exibição arrogante de poder.

O governo engoliu esta insolência com a tolerância de quem está na posição mais fraca. Este episódio mostrou para quem quis ver, como o destino do nosso país depende nestes dias dos caprichos dos marxistas.

Da última vez que os socialistas saíram do poder precisamos de uma troika, mas da próxima, precisaremos de uma perestroika.

A escola arrancou como sempre no final do Verão. A apreensão era geral. Ao contrário dos seus alunos, muitos professores pertenciam ao chamado grupo de risco. Como é que iriam coexistir estes dois grupos com tamanhas diferenças perante a ameaça? O primeiro período correu exemplarmente. Durante algum tempo tentaram recuperar as falhas do ano anterior, quase todo leccionado à distância, e seguiram em frente.

Os professores só faltaram quando, na dúvida, lhes era recomendado o isolamento profiláctico ou quando testaram positivo. Logo após cumprida a quarentena obrigatória, regressaram às salas de aula, mostrando-se assim, e mais uma vez, à altura das responsabilidades.

Os alunos também se adaptaram. Andaram sempre de máscara que só tiravam durante as refeições. Nos intervalos juntaram-se nos habituais grupos de amizades que raramente coincidem com a disposição da sala de aula. Entre eles falaram, com a voz abafada pela máscara, do que é normal que falem, do mundo que descobriam e trocaram perguntas sobre a vida, recorrendo às formas de expressão normais para a sua idade.

Quando as temperaturas começaram a descer, o número de infectados começou a subir, e número de mortos não demorou também a aumentar. A segunda vaga chegou acompanhada com várias semanas de chuva, seguida de frio e gelo. E novamente de mais chuva. Os pobres sofrem sempre mais no tempo frio e este está a ser um inverno particularmente forte, especialmente forte para com os mais fracos.

Pelo menos, depois de alguns meses de folga nas infecções, já não seríamos apanhados de surpresa. Houve quem acreditasse nisso.

Ainda a maré estava a começar a subir e já os nossos governantes começaram a falar em salvar o Natal, criando de imediato a ideia que nessa altura iria haver uma maior tolerância nas deslocações e nos ajuntamentos familiares. Fizeram isso ignorando as recomendações científicas, pois talvez tenham acreditado que o vírus também parava durante as nossas festividades.

Claro que foi agradável ouvir isso. Pelo menos teríamos um Natal em condições junto dos nossos idosos que viviam isolados há tantos meses. Quem é que se podia opor a notícias tão boas?

Ao mesmo tempo começaram a ser administradas as primeiras vacinas. Só de nos imaginar a todos vacinados … até nos permitimos a inspirar um profundo folgo de esperança.

O Pai Natal este ano iria trazer as vacinas. No Natal celebrou-se o que sempre se celebra, uma nova vida, um novo alento. Umas mais do que outras, as mesas encheram-se, e à volta delas celebrou-se e brindou-se. Como foi bom poder fazer uma trégua a meio da batalha.

Enquanto isso, nos países europeus que deram ouvidos à ciência, o confinamento foi mais apertado do que nunca e as festividades foram proibidas.

Ainda havia umas fatias de bolo-rei por comer e logo começou a haver notícias sobre as mutações do vírus. Registou-se uma nova estirpe no Reino Unido, pouco depois surgiu uma mutação brasileira e também uma sul-africana. Quantas mais iriam ainda aparecer? Será que o vírus se iria tornar mais ou menos agressivo? E será que as vacinas, ainda antes de serem distribuídas, já estariam obsoletas?

Enquanto tentávamos entender o que se estava a passar, os números dos infectados dispararam. De 1.500 infecções diárias, chegamos às 15.000, em menos de um mês. Como cerca de um por cento dos infectados necessitam de assistência hospitalar, todos os dias chegam mais de 150 doentes em risco de vida aos hospitais. Em poucos dias as ambulâncias começaram a esperar cada vez mais tempo nas filas para conseguirem entregar os doentes nas urgências. Por vezes, cada vez com maior frequência, começaram a seguir dessas filas para a morgue. O número de óbitos disparou. Neste momento morrem com Covid mais de 10 portugueses por hora e já foram registados mais mortos pelo vírus, do que na Grande Guerra e na Guerra do Ultramar juntos.

Alguns hospitais tiveram de adquirir câmaras frigoríficas para conseguir gerir a tenebrosa logística de tantos cadáveres. As estruturas privadas de saúde afinal revelaram-se necessárias, mas o apego à ideologia e a recusa, até à última, em recorrer a elas, custou a vida a demasiados portugueses. Já te falei da força que os marxistas hoje ainda têm, não foi?

As estatísticas internacionais desta pandemia dizem-nos que Portugal é nestes dias o pior sítio do mundo.

Quem morre infectado é despachado, sem vestes dentro de um saco de plástico. Os cangalheiros, em vez do habitual fato preto, envergam agora fatos brancos de protecção biológica, com máscara, óculos especiais e botas de borracha. As cerimónias fúnebres estão limitados a um número muito restrito de pessoas, definido por cada autarquia.

O que seria de nós sem os cangalheiros? O que será de nós se os coveiros sucumbirem?

Quem sofre ataques cardíacos, acidentes ou outras complicações graves de saúde, tem medo de ir para o hospital e demasiada gente, que em tempos normais teria sido salva, acabou por falecer em casa. Para os condutores e assistentes das ambulâncias de emergência médica, tornou-se normal transportarem apenas cadáveres. Ninguém ficará surpreendido com futuras sequelas de choque pós-traumático entre os profissionais de saúde.

Foi neste ambiente que se realizaram as eleições. O governo lembra-nos diariamente do nosso dever de ficar em casa para evitar mais contágios, para no minuto seguinte nos lembrar que votar é um dever cívico. Desde que a pandemia foi declarada, mais de 75 actos eleitorais foram adiados pelo mundo fora, mas cá as decisões importantes demoram a ser tomadas, e se forem mesmo muito importantes, o mais provável é que não sejam tomadas de todo.

Um dos candidatos que se apresentou a votos, irrita bastante os nossos governantes, assim como as pessoas normais. Diz palermices e é agressivo. Mesmo assim, não pelo que diz, mas apesar do que diz, e apenas porque irrita a situação, acabou por ter bastantes votos. Quem votou nele ficou satisfeito por ver como o seu voto conseguiu irritar os nossos governantes.

O vencedor é o mais completo retrato do nosso regime, e por isso faz sentido ter ganho. É filho da nomenclatura do regime anterior, mas desde os primeiros instantes do que temos, esteve envolvido em tudo o que nos levou ao ponto em que estamos.

Mesmo após 20 anos de estagnação económica, os políticos no poder continuam a pensar que criam riqueza por decreto, e que se assim o entenderem, à força da lei farão os leões voarem e as zebras rugirem. Eu quando os escuto com atenção só oiço zurrar.

Demasiada gente pensa que ao fazer por ignorar as mudanças as consegue evitar, mas esse é um erro antigo da humanidade, para o qual não existe bom senso que impeça que se repita.

Lá fora o tempo continua de chuva. Os últimos dias foram de um burranho que, juntamente com as notícias, nos encharcaram a alma e os olhos. A chuva não se distingue do nevoeiro, tal e qual como aquela que terá caído nos Invernos das pestes medievais.

É um luto permanente.

Quando numa saída para comprar víveres, pela voz, fisionomia ou pelos movimentos, reconhecemos um amigo, sorrimos por detrás de duas máscaras sobrepostas, chocamos com as nozes dos punhos resguardados dentro de luvas de protecção e dizemos, como quem quer garantir: Enquanto não piorar, aguentamos!

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