Papéis inesquecíveis quase esquecidos. 4: Simone Signoret, em Casque d'Or.
Na década de oitenta, já ela falecera, Yves Montand teve um comentário cruel: «Apaixonei-me pela Casque d'Or, encontrei-me a viver com Madame Rosa.» Referia-se a dois papéis de Simone Signoret: a luminosa Marie, com a sua cabeleira dourada (Casque d'Or / Aquela Loira, 1952), e a idosa e pouco atraente Madame Rosa, sobrevivente de Auschwitz, ex-prostituta, ama de filhos de prostitutas, do filme de 1977 La Vie Devant Soi, baseado no livro de Romain Gary com o mesmo título (última edição portuguesa em 2011, pela Sextante, ainda em português não mutilado).
Em abono de Montand, deve salientar-se que a perda de beleza de Signoret não quebrou a relação de décadas que mantiveram e que terminou apenas com a morte dela, em 1985, na sequência de cancro do pâncreas (Montand faleceu seis anos mais tarde e foi sepultado a seu lado, no cemitério Père Lachaise). De resto, ainda que cruel, o comentário mostra-se relativamente exacto (a rodagem de Casque d'Or correspondeu ao período inicial da relação entre ambos, tendo Montand - que não entrava no filme - assistido à filmagem de muitas cenas) e, acima de tudo, útil para perceber o temperamento de Signoret, que fumava e bebia em excesso, era senhora do seu nariz e se mostrava pouco preocupada com a manutenção da beleza da juventude (algo aparentemente impensável para as actrizes - e actores - dos dias de hoje, que começam a esticar a pele da cara mal saem da adolescência) mas muito preocupada com a genuinidade das suas interpretações. (Haverá certamente por aí quem se lembre dela na série policial Madame Le Juge, de 1978, transmitida pela RTP há cerca de 35 anos.)
Nasceu Simone Kaminker no ano de 1921, em Wiesbaden, na Alemanha, ocupada pelos franceses na sequência da Primeira Guerra Mundial. O pai era um judeu de ascendência polaca que servia no exército e mais tarde seria tradutor (em 1934, traduziu em directo para a rádio um famoso discurso de Hitler em Nuremberga). Signoret era o apelido da mãe. A família fixou-se nos arredores de Paris e Simone deixou-se atrair pelos círculos intelectuais, tornando-se parte do grupo de escritores e artistas que frequentava o Café de Flore. Passou a Segunda Guerra Mundial desempenhando pequenos papéis em filmes, sem licença de trabalho devido ao pai, que fugira para Inglaterra em 1940. Em 1944 iniciou uma relação com o realizador Yves Allégret, o qual, numa fase em que já era relativamente conhecida, viria a dar-lhe dois papéis cruciais - em Dédée d'Anvers (Vidas Tenebrosas), de 1948, e em Manèges, de 1950. Teve uma filha com Allégret em 1946 e casou-se com ele em 1948 mas no ano seguinte conheceu o tal rapaz - jovem cantor e actor também nascido em 1921 - que se apaixonou pela Casque d'Or e acabou casado com Madame Rosa. Foi um coup de foudre que resultou em três décadas e meia de vida em comum, durante as quais Simone participou em alguns filmes fundamentais na história do cinema: Les Diaboliques (1955), de Henri-Georges Clouzot, Room at the Top (1959), de Jack Clayton (que, muito justamente, lhe valeu o Óscar de melhor actriz em 1960), Ship of Fools (1965), de Stanley Kramer (ao lado de Viven Leigh, no último desempenho desta), L'Armée des Ombres (1969), de Jean-Pierre Melville.
Como tantas vezes no início da carreira, em Casque d'Or desempenha o papel de uma prostituta. Na Paris dos primeiros anos do século XX, Marie é a preferida de Roland, um criminoso que não vê com bons olhos a entrada em cena de Georges Manda (Serge Reggiani), carpinteiro desde que saiu da prisão por crimes que nunca ficam claros. Numa luta nas traseiras de um bar, Manda mata Roland. Leca, líder do bando a que Roland pertencia e também ele de olho em Marie, incrimina Raymond, amigo de infância de Manda. Para evitar que o amigo seja guilhotinado, Manda tem que escolher entre a liberdade (e Marie) e a confissão que o conduzirá à guilhotina no lugar do amigo.
O filme baseou-se numa história verdadeira ocorrida em 1898 e não teve grande sucesso em França aquando da estreia (ao contrário do que sucedeu em Inglaterra, onde Signoret ganhou um BAFTA). O tom de tragédia iminente terá algo a ver com o assunto, como talvez a recusa em fazer julgamentos de moral (Manda não julga o passado de Marie, a esta não interessa o dele) e a falta de tiradas grandiosas e de juras reiteradas de amor. A relação entre Marie e Manda desenvolve-se muito mais à base de gestos, posturas e, acima de tudo, olhares do que de palavras: Manda quase não se dirige a Marie em todo o filme e esta pouco fala com ele. Tem lógica (as palavras são supérfluas para pessoas que já viram muito e estão cientes da fragilidade da situação e da necessidade de aproveitar o pouco tempo disponível) mas terá sido um pouco desconcertante para o público (e para os críticos) de então. Porém, em grande medida, é este à-vontade imediato, instintivo, que transmite a sensação de estarmos perante um encontro de almas gémeas (estar confortável com os silêncios é algo que costuma ocorrer muito mais tarde nas relações). Jacques Becker, um realizador lento, perfeccionista, discretamente romântico, que - como Jean Renoir, de quem foi assistente - gostava de filmar em exterior sempre que possível (o que fazia disparar os custos), reforça esta sensação através de imagens luminosas, precisas, sem elementos supérfluos, ainda que frequentemente pontuadas com detalhes do quotidiano.
(Casque d'Or pode não ter tido sucesso comercial mas marcou várias pessoas, entre as quais uma rapariga chamada Eunice Waymon, nascida na Carolina do Norte em 1933, que adoptaria o nome artístico Nina Simone em homenagem ao desempenho de Signoret.)
Becker - que nunca obteria um grande sucesso de bilheteira - não foi o primeiro realizador a pegar no projecto de Casque d'Or. Porém, torna-o seu conferindo-lhe uma simplicidade e uma fluidez desarmantes (características dificílimas de obter mas tantas vezes desvalorizadas). Intuindo-se que dificilmente o final será feliz, há na forma como a história se encontra apresentada uma faceta de redenção, de aproveitamento pleno do pouco tempo disponível, que a torna estranhamente optimista - talvez uns quantos dias de felicidade absoluta valham mais do que uma vida de frustrações. Signoret e Reggiani eram actores com estilos muito diferentes - ela mais instintiva, ele mais necessitado de «habitar» a personagem - mas criam ambos figuras memoráveis. Sem uma ponta de overacting, Reggiani compõe um solitário de poucas palavras que não deseja problemas mas não recua perante eles e a quem o destino surge sob a forma de um amor incontornável. Quanto a Signoret, imbui Marie de uma dignidade e de uma força por vezes roçando a insolência (é ela quem escolhe Manda desde o início, circunstância que torna o final ainda mais pungente) que transformam a Casque d'Or numa das personagens femininas mais marcantes da história do cinema e viriam a caracterizar muitos outros papéis seus (recorde-se, por exemplo, a amante preterida de Room at the Top). Nos melhores e nos piores momentos, Marie domina - e ilumina - a tela. Esteja o seu cabelo de ouro apanhado ou caindo-lhe esplendorosamente sobre os ombros.