Papéis inesquecíveis quase esquecidos. 3: Linda Fiorentino, em The Last Seduction.
A vítima julga-se o caçador. E depois é tarde.
A presença de 'bitches' (mais sobre o termo em breve) no cinema americano forma um historial longo e prestigiado. Ficando por algumas das mais conhecidas, Mary Astor, no papel de Brigid O’Shaughnessy, já tentava dar volta ao Sam Spade de Humphrey Bogart em The Maltese Falcon (John Huston, 1941). Falhou (vindo dos livros de Hammett, Spade não deixava a testosterona toldar-lhe o raciocínio) mas abriu o caminho a Phyllis Dietrichson que, três anos depois, levou o agente de seguros Walter Neff (Fred MacMurray) a assassinar-lhe o marido, no que muitos consideram ser o pai do Film Noir: Double Indemnity, de Billy Wilder. Em 1981, Matty Walker (Kathleen Turner) deixou Ned Racine (William Hurt) a transpirar por todos os poros em Body Heat, de Lawrence Kasdan, e uma década mais tarde surgiram duas adaptações do livro As Ligações Perigosas, de Laclos, onde pontificava a sedutora e manipulativa Madame de Meurteil (Glenn Close na versão de Stephen Frears, Annette Benning na de Milos Forman). A última grande ‘bitch’ do cinema americano terá sido Amy Dunne, interpretada pela inglesa Rosamund Pike, que há menos de um ano fez gato-sapato do marido Nick (Ben Affleck) em Gone Girl, de David Fincher (naquele jeito de liberal de Hollywood, incapaz de uma frase politicamente incorrecta, Affleck prestou-se de forma brilhante ao papel). Se me forçassem a ordenar uma lista, contudo, eu talvez atribuísse o papel de 'ultimate bitch' do cinema a Bridget Gregory, corpo e voz de Linda Fiorentino, em The Last Seduction, de John Dahl (1994). E ao chamar-lhe ‘bitch’ não estou a fazer uma apreciação de valor externa ao filme: é a própria Bridget quem o assume durante uma cavalgada sexual no interior de um Jeep Cherokee. De resto, que ela o faça torna-se útil para a definição do conceito: 'bitches' são mulheres que seduzem e manobram homens de acordo com interesses particulares, levando-os a actos contrários ao seu interesse e – no limite – criminosos; são mulheres que vêem sexo e sentimentos como meios para a obtenção de resultados materiais e se encontram perfeitamente conscientes de possuírem um poder que atira quase todos os homens heterossexuais para um estado de ingenuidade e estupidez atrozes (perdoe-se-me o adjectivo mas sou homem e heterossexual). Qual a diferença para homens atraentes e manipuladores? Apenas que estes, tendo os mesmos objectivos (riqueza, fama, poder), são, quiçá em resultado do condicionamento social e sexual a que as mulheres estiveram sujeitas ao longo dos séculos, que as obrigou a especializarem-se em jogos subtis de manipulação, muito mais lineares na forma como procuram atingi-los. Esse condicionamento (de boa saúde em inúmeras latitudes) também faz com que ainda seja desconfortável para muitos homens (e algumas mulheres) verem mulheres no papel de predadoras sexuais - algo inerente às 'bitches', mesmo que, circunstancialmente, elas adoptem a capa de 'donzela em apuros'.
No início de The Last Seduction, Bridget abandona o marido (Bill Pullman, hilariante no meio do desespero) e a cidade de Nova Iorque, levando com ela uma mala cheia de dinheiro resultante de uma venda de droga. Obviamente, o cônjuge não fica satisfeito, muito em especial porque tem dívidas a um agiota com tendência para aparar dedos a quem se atrasa nos pagamentos. A caminho de Chicago, Bridget pára na pequena cidade de Beston e conhece Mike (Peter Berg), um tipo bem parecido mas – percebe-se logo – não excessivamente inteligente. Mike recupera de um casamento irreflectido, está desejoso de abandonar Beston e, naturalmente, deixa-se enfeitiçar pela atitude ‘don’t give a shit’ da citadina Bridget. (Há uma cena deliciosa em que ela, estando na rua a ler o jornal e a beber café, acaba por se meter dentro do carro para escapar aos «bons dias» cordatos dos transeuntes.) O resto do filme é um jogo do gato e do rato entre esposos (sendo que nem sempre o rato é quem parece), com Billy apanhado no meio, tentando convencer-se de que Bridget está genuinamente interessada nele quando vai ficando cada vez mais claro que o seu papel é exclusivamente ajudá-la a desfazer-se do marido e ficar com o dinheiro.
O filme tem voltas e reviravoltas suficientes para constituir um excelente thriller mas é mais interessante pela forma como Bridget se mantém uma ‘bitch’ do primeiro ao último fotograma. Quando Phyllis e Walter se confrontam perto do final de Double Indemnity, não é descabido ver tristeza na expressão dela. Também não é descabido pensar que Madame de Meurteil (na versão Glenn Close como na versão Annette Benning) lamenta o destino do Visconde de Valmont. Na última cena de Body Heat, Matty Walker tem uma expressão melancólica, apesar de se encontrar exactamente na situação com que sempre sonhou: rica, apanhando sol numa praia exótica. Bridget Gregory também surge nos últimos instantes de The Last Seduction mas nada na sua expressão permite acalentar a esperança de que lamenta o que quer que seja. Ganhou e é isso que lhe importa. Ainda hoje, Fiorentino confessa ter sido esse um dos pontos que mais a atraiu no papel: a recusa feroz em ‘sentimentalizar’ Bridget. Na verdade, os tradicionais papéis masculino e feminino estão invertidos no filme. Bridget nunca diz claramente a Billy que o ama enquanto este se esforça por acreditar que, traumatizada pelo casamento, ela apenas resiste a admiti-lo. Mais: tirando os momentos em que tal se revela indispensável para a prossecução do seu plano, Bridget mente muito pouco a Billy. Na maior parte do tempo, nem sequer esconde sentir por ele algum desprezo. É uma combinação de desejo e ilusões (ela não pode ser assim tão cabra) que o mantém interessado. O clímax do filme (pun intended) também nos mostra que Billy é uma personagem com mais dúvidas acerca da sua própria sexualidade do que quer fazer crer. E há ainda o facto de vermos quase sempre o homem incontornável na vida de Bridget – o marido – relegado ao apartamento de Nova Iorque, qual esposa impotente, furiosa por desconhecer o paradeiro do cônjuge.
The Last Seduction foi o terceiro de uma sequência de filmes tematicamente similares de John Dahl. O anterior, Red Rock West, com Nicolas Cage, Lara Flynn Boyle e Dennis Hopper também vale muito a pena. Após The Last Seduction, Dahl ainda realizou obras como Rounders, com Matt Damon e Edward Norton, mas depressa saiu de cena, estando hoje relegado à realização de episódios de séries televisivas. The Last Seduction foi «vendido» à produtora como sendo um filme curto, de rodagem rápida, com violência e sexo, mas Dahl e o argumentista, Steve Barancik, sempre tiveram ambições um pouco mais elevadas. Barancik relata que, após terem chegado a uma versão do argumento que ambos consideravam não poder ser mais reduzida, sob pena da lógica narrativa e da definição das personagens se perder, Dahl lhe telefonou, dizendo que a produtora ainda a considerava demasiado longa e exigia o corte de cinco páginas. Contrariado, Barancik meteu as mãos ao trabalho. Enviou o resultado a Dahl, que lhe ligou escandalizado com as alterações. Barancik perguntou-lhe como havia de encurtar o guião em cinco páginas sem cortar ou reescrever cenas. Dahl deu a resposta óbvia: «Reduz nas margens!» Cinco páginas mais ‘curto’, o guião foi aprovado e o financiamento obtido.
Linda (née Clorinda) Fiorentino nunca foi uma actriz de primeiro plano. Creio ter começado por vê-la em After Hours, de Martin Scorsese, depois achei piada a The Moderns, de Alan Rudolph (um realizador quase esquecido), mas foi The Last Seduction que – passe o pleonasmo – verdadeiramente me seduziu. Para o bem e para o mal, o filme marcou os anos seguintes da carreira de Fiorentino: que William Friedkin a tenha escolhido para protagonizar o fraquinho Jade só pode dever-se a ele e à tendência hollywoodesca para o typecasting. Entrou ainda noutro filme de John Dahl (Unforgettable, de 1996, que não fez jus ao título), em Men in Black, de Barry Sonnenfeld (1997), e praticamente não filma desde o início do milénio. Nem todos concordarão mas arrisco afirmar que The Last Seduction marcou o ponto alto das carreiras tanto do seu realizador como da sua actriz principal.
Deixei para o fim a questão mais perturbadora. Bridget é tão honesta na atitude de desinteresse pelas vontades alheias que as ilusões dos homens que encontra – e, em particular, de Billy – podem não decorrer apenas de ingenuidade mas da assumpção (o passo seguinte a uma percepção que se vem tornando cada vez mais evidente) de que, hoje em dia, o papel principal (talvez único) dos homens é servir os propósitos das mulheres (sejam eles reprodutivos, recreativos ou financeiros) e que, tal como o louva-a-deus é consumido após a cópula, constitui sua função (se não objectivo) extinguirem-se após eles serem atingidos. Uma espécie de desejo de morte nos braços (e na vagina) da mulher mais forte e atraente das redondezas. Afinal, não pode ser coincidência que os homens com quem Fiorentino saiu nos anos seguintes a The Last Seduction procurassem nela – confessa-o a própria em entrevistas – Bridget Gregory. E que ficassem desiludidos por não a encontrarem.