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Delito de Opinião

Papéis inesquecíveis quase esquecidos. 2: Miriam Hopkins, em Trouble in Paradise.

José António Abreu, 12.04.15

Jean Renoir disse uma vez que Ernst Lubitsch inventara a Hollywood moderna. O «Lubitsch touch», subtileza e elegância assente em elipses (no não-dito e no não-mostrado, forçando o espectador a usar a imaginação para acrescentar grande parte da malícia de que os filmes se alimentam) mas também numa abordagem decididamente arriscada das relações sexuais (de tal modo que Lubitsch teve o cuidado de situar vários filmes na Europa, em vez de nos Estados Unidos), marcaria outros realizadores, com destaque para Billy Wilder. Entre as obras-primas que o alemão realizou em Hollywood conta-se o primeiro musical misturando canções e narrativa (The Love Parade, de 1930) e pelo menos quatro das melhores comédias de sempre: Ninotchka, com Greta Garbo no papel de comissária soviética enviada a Paris para pôr cobro aos desvios capitalistas de um grupo de camaradas, To Be or Not to Be, uma sátira passada durante a Segunda Guerra Mundial, na qual uma companhia de teatro actuando em Varsóvia tenta recuperar um dossier crucial para a resistência fazendo passar por Hitler um dos seus elementos (mais preocupado com as possíveis infidelidades da mulher), Heaven Can Wait, a suave e libertadora história de um homem demasiado interessado em mulheres, ainda que profundamente apaixonado pela sua, e Trouble in Paradise (Ladrão de Alcova), o mais antigo dos quatro (de 1932; Ninotchka é de 1939 e os outros dois da década de 40), a história de dois burlões que, depois de se apaixonarem, começam a trabalhar juntos, enfrentando não apenas o risco de serem presos mas também as tensões inerentes a uma ocupação que inclui a sedução de terceiros. O par é constituído por Gaston Monescu, famoso ladrão internacional (interpretado por Herbert Marshall), e por Lily Vautier, menos célebre mas igualmente ambiciosa (Miriam Hopkins).

Hopkins nasceu em 1902 numa família abastada de Savannah. Foi para Nova Iorque estudar ballet mas deixou-se atrair primeiro pelos musicais da Broadway e depois pelo teatro. Enfrentou críticas pouco lisonjeiras mas persistiu, fez a transição para o cinema e acabou uma das actrizes mais conhecidas e bem pagas da Paramount durante a década de trinta. No final desta, lutou sem sucesso pelo papel principal em E Tudo o Vento Levou e a partir daí a sua carreira no cinema decaiu, tendo voltado aos palcos e, depois, já na década de 50, feito várias incursões pela televisão. Faleceu de ataque cardíaco em Nova Iorque, a poucos dias de fazer 70 anos. Não sendo uma grande actriz, é memorável em pelo menos dois filmes de Lubistsch – Trouble in Paradise e Design for Living. Neste, incapaz de decidir entre Frederic Marsh e Gary Cooper, acabava por ficar com ambos (o filme decorria maioritariamente em França, país que todos os americanos sabiam ter códigos morais muito duvidosos). Em Trouble in Paradise, Hopkins conquista pelo entusiasmo com que aborda o papel, imbuindo-o de uma ambição tão honestamente desmedida (em especial por Gaston e jóias alheias) que acaba entrando no reino da ingenuidade. Acredito que algumas sensibilidades vejam apenas excesso no desempenho – de certa forma, insere-se num estilo comum a muitas comédias da época, portuguesas incluídas, embora atingindo um patamar de subtileza (quiçá graças a Lubitsch) bastante superior – mas tal constituirá acima de tudo indício de embotamento dessas sensibilidades e da tendência blasé da sociedade actual.

A trama é simples. Depois da sequência inicial, passada em Veneza e na qual os dois vigaristas se conhecem e apaixonam, o filme transfere-se para Paris e para o triângulo cujo terceiro vértice é constituído pela rica Madame Colet (Kay Francis), de que Gaston se torna «secretário», planeando roubá-la. Consegue infiltrar Lily em casa da Madame como «assistente» dele (era outra época, também no que se refere à hierarquia de valor destes termos), e Lily rapidamente verifica o modo despudorado como Madame se atira a Gaston. Na primeira conversa entre as duas (perante tantas jóias, Lily passa o tempo sentada sobre as mãos), Madame Colet propõe-se aumentar de 300 para 350 francos o salário (fictício) que Gaston paga à assistente. Mais tarde, ele questiona Lily: «O que é que ela queria?» Ela responde: «Tu. E está disposta a pagar até 50 francos para te obter.»

O filme tem muitas subidas e descidas de escadas (marca registada do «Lubitsch touch»), portas que se fecham mas apenas se trancam depois de ficar claro que ninguém virá bater (e como o som da fechadura é então a mais pura expressão do desapontamento) e vários momentos de tensão. Tem também excelentes personagens secundárias, com destaque para François Filiba (Edward Everett Norton, ubíquo e sempre excelente nas comédias da época), um indivíduo rico e pomposo, muito interessado em Colet, que, sem o saber, possui a chave para desmascarar Gaston (foi ele quem, no hotel em Veneza, perdeu a carteira no quarto two fifty three, five, seven and nine, mencionado no excerto acima, depois de abrir a porta a um «médico» que exigiu ver-lhe as amígdalas). A minha cena favorita, porém, talvez seja aquela em que Lily e Gaston, prestes a serem descobertos, decidem fugir para Berlim. Por telefone, Lily trata de arranjar vistos junto do consulado espanhol para o Sr. e para a Sra. Ignacio Lopez, debitando castelhano a alta velocidade. Após ela desligar, Gaston pergunta-lhe como está o seu alemão e Lily responde nessa língua. Segue-se uma troca de frases (sempre em alemão) em ritmo cada vez mais acelerado, rematada com um «auf wiedersehen» quase gritado por ela, antes de dar um beijo rápido a Gaston e sair disparada porta fora. O entusiasmo é tão contagiante que, por instantes, nos liberta do cinismo com que olhamos o mundo e tão excessivo que se torna irreal e, por isso, cómico. Mas a irrealidade gera também nostalgia por um mundo que não existe, nunca verdadeiramente existiu (em 1932 vivia-se a Grande Depressão, algo que também esquecemos ao ver, por exemplo, A Canção de Lisboa), mas gostaríamos que existisse. Um mundo onde os sentimentos não exigem análises pós-freudianas e podem ser expressos de forma cândida, e onde até os ladrões são encantadores, apaixonados e razoavelmente inofensivos.

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