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Delito de Opinião

Papéis inesquecíveis quase esquecidos. 1: Lee Remick, em Wild River

José António Abreu, 28.03.15

Há outra presença feminina inesquecível em Wild River, de Elia Kazan: Jo Van Fleet, no papel de Ella Garth, uma mulher íntegra e teimosa que luta pelo direito a permanecer - enquanto viva e também depois de morta - na terra que ela e o marido reclamaram há dezenas de anos e sob a qual ele já se encontra. Mas os olhos azuis, a pele luminosa e a repentina sede de viver de Carol, a personagem interpretada por Lee Remick, ofuscam.

É estranho que Remick esteja mais ou menos esquecida. Depois de vários anos na televisão, começou a carreira cinematográfica em filmes como The Long, Hot Summer, de Martin Ritt, contracenando com Paul Newman (Joanne Woodward tinha o principal papel feminino), e Anatomy of a Murder, de Otto Preminger, ao lado de James Stewart (já como actriz principal). Em 1960 veio Wild River e, ao longo da década seguinte, obras de Blake Edwards, Carol Reed, Arthur Hiller e John Sturges. Nos anos 70 a sua estrela começo a perder brilho (ainda assim, é forçoso mencionar o icónico The Omen, de Richard Donner, com Gregory Peck) e acabou de regresso à televisão, antes de falecer, nova de 55 anos, em 1991.

Wild River (Quando  Rio se Enfurece) é um Kazan ligeiramente menos teatral do que as suas obras da primeira metade da década de 50 (Um Eléctrico Chamado Desejo, Há Lodo no Cais, A Leste do Paraíso). Pode até ser visto como uma primeira versão do filme seguinte, Esplendor na Relva. Inclui, porém, quase todas as suas marcas registadas: method acting, luta entre forças desiguais, preocupações sociais (neste caso, ligadas à questão racial), desejos reprimidos, paixões que se confundem com amor e são sobretudo desejo de escapar à realidade em que se vive. Wild River acompanha os esforços de Chuck Glover, funcionário de uma agência governamental, para convencer Ella Garth a abandonar a sua pequena ilha no rio Tennessee, uma vez que as águas irão subir na sequência da construção de uma barragem. Chuck é Montgomery Clift, em versão pós-acidente de automóvel, que lhe alterou muito mais do que o rosto, como ficaria ainda mais visível no filme seguinte: The Misfits, de John Huston, com Marylin e Clark Gable. (*)

Quando Chuck aparece, Carol, a neta da dona da ilha, está viúva há três anos (desde os 19). Tem dois filhos a cargo e encontra-se resignada ao desencanto e à proposta de casamento de um pretendente local, bastante mais velho. Chuck também é mais velho (Clift fez 40 anos em 1960; Remick, 25) mas vem de fora e, mais importante, não ficará por ali. É uma oportunidade, uma esperança repentina a que por vezes - de modo a evitar desilusões -  ela tenta resistir. A certa altura, diz-lhe que o ama e talvez seja verdade (as circunstâncias desempenham um papel crucial no despoletar das paixões) mas encontra-se acima de tudo a tentar convencê-lo e a tentar convencer-se a si própria, justificando de caminho as traições que sente estar a cometer: à avó, à terra que esta defende com unhas e dentes, ao (surpreendentemente íntegro) pretendente local, a um outro método de arranjar marido. Como em quase todos os filmes de Kazan, a sexualidade é intensa e carnal mas nasce das poses, das hesitações, das palavras ditas e deixadas por dizer, dos gestos e dos olhares, das respirações, muito mais do que de cenas de sexo. Nasce também da beleza física de Remick. Esta, juntamente com o ardor e vergonha que dominam a personagem, constituem um cocktail a que poucos homens (ainda que nada interessados em ver-se de súbito com uma esposa e dois filhos) conseguiriam resistir. Kazan (e Paul Osborn, que escreveu o guião, baseado em livros de William Bradford Huie) sabia-o. Mas também sabia que uma relação assim dá parcas garantias de felicidade. O final parece feliz mas deixa no ar ambiguidade suficiente para o espectador apenas se poder permitir manter uma ligeira esperança de que tudo correrá bem. E fá-lo porque Carol - luminosa Remick - merece-o.

 

(*) Em 1956, Clift embateu com o seu Chevrolet contra uma árvore quando saía de uma festa em casa de Elizabeth Taylor. Conta-se que ela lhe salvou a vida, ao remover dois dentes que lhe bloqueavam a garganta.

 

 

Nota: Os mais perspicazes (vocês sabem quem são; nah, sabem nada) terão depreendido pelo título que é suposto este texto dar início a uma série. Gostaria de informar que não faço promessas quanto à regularidade e duração da mesma. Se conseguir convencer-me a escrever textos mais curtos (facilitam tanto a vida...), talvez saia um por semana. Caso contrário, no Natal isto já deve ter chegado ao nº 2. 

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