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Delito de Opinião

Papéis inesquecíveis quase esquecidos (6)

José António Abreu, 12.11.16

 

Tatum O'Neal, em Paper Moon (Lua de Papel, 1973).

 

Paper Moon, de Peter Bogdanovich, é uma revisitação dos Estados Unidos da época da Grande Depressão, baseada no último livro do escritor e jornalista Joe David Brown. Passado entre grandes espaços (frequentemente no interior de um veículo descapotável), e pequenas cidades, filmado a preto e branco (com filtros vermelhos ou verdes em frente à objectiva, de modo a gerir o contraste), e sempre com elevada profundidade de campo, o filme abre com um funeral. No pequeno grupo de pessoas que ladeia a campa, encontra-se uma rapariga de oito ou nove anos. Subitamente, aproxima-se um carro barulhento. Dele sai um indivíduo que se junta ao enterro. Moses Pray (Ryan O'Neal, protagonista de filmes como Love Story, Barry LyndonThe Driver), diz-se amigo da falecida mãe da rapariga. Ao mencionar que vai para St. Louis, os presentes propõem-lhe que leve a miúda, Addie Loggins, até casa de uns tios, únicos familiares conhecidos, situada em St. Paul, a curta distância de St. Louis. Após alguma resistência, Moses acaba por aceitar.

Addie (Tatum O'Neal, no seu primeiro desempenho) rapidamente percebe que na base da disponibilidade de Moses não se encontram noções de solidariedade mas um plano para extorquir dinheiro à família de um ex-amante da mãe, responsável pelo acidente de automóvel em que ela faleceu. Com uma segurança fenomenal, troca-lhe as voltas, impedindo-o de a despachar (sozinha, de comboio) para casa dos tios e forçando-o a incluí-la nas pequenas vigarices com que vai sobrevivendo. (A favorita: entregar a viúvas bíblias pretensamente encomendadas - mas ainda não pagas - pelos falecidos maridos.) Progressivamente, a situação complica-se e a polícia acaba atrás deles.

 

O filme nunca esclarece se entre Addie e Moses existem laços familiares. Ela desconfia que sim e pergunta-lhe logo de início se é o pai dela. A resposta vem negativa, mas sabemos desde cedo - como Addie também sabe - que ele mente com naturalidade. Mente tanto que poderá até estar a mentir sobre o nome, tão adequado a um vendedor de bíblias: «Moses», de Moisés, e «Pray», de rezar. Na verdade, o nome constitui todo um tratado de ironia. Estamos perante um Moisés muito fraco, péssimo enquanto guia (físico ou espiritual), raramente disponível para ouvir a voz da razão, e que pura e simplesmente não reza. Foneticamente, «Pray» também pode ser «presa», uma designação muito mais apropriada à personagem. Igualmente irónico - numa forma, digamos, metacinematográfica - é o facto dos actores serem mesmo pai e filha, e de existirem indícios de que Ryan não terá sido o que se classificaria de pai ideal.

Em 1974, Tatum O'Neal até venceu o Óscar de melhor actriz secundária pelo seu desempenho em Paper Moon (como noutros casos, o papel é claramente principal) mas acabou tendo uma carreira cinematográfica discreta. Hoje, será mais conhecida por acontecimentos ligados à sua vida privada: Michael Jackson nomeou-a como primeira paixão; foi detida por posse de droga; casou com o tenista John McEnroe em 1986 e, na sequência do divórcio, ocorrido em 1994, manteve com ele uma batalha feroz pela custódia dos 3 filhos (devido aos problemas de O'Neal com a droga, McEnroe conseguiu-a em 1998); lançou uma autobiografia (A Paper Life, 2005), polémica por nela descrever como viveu desde criança rodeada por drogas (num paralelo perturbador, em 1970 a mãe perdera a custódia de Tatum e do irmão Griffin precisamente por causa delas), como foi abusada aos 12 anos pelo dealer que as vendia ao pai, e como este constituiu sempre uma presença distante, mesmo nas ocasiões em que se encontrava fisicamente por perto. A relação de Tatum com o pai é difícil até hoje e ela deixa claro em entrevistas que ele não a tratava como uma criança deve ser tratada. Um exemplo menor, quase anedótico: quando Ryan participou em Barry Lyndon, forçou-a a ver todos os filmes anteriores de Kubrick (ela tinha pouco mais de dez anos). Outro: Ryan esteve ausente na cerimónia de entrega dos Óscares (que diabos tinhas vestido, miúda?), alegadamente irritado por a filha ter sido nomeada e ele não.

Um palavra também sobre Bogdanovich. Fez parte de uma geração de realizadores que despontava no início da década de 70 e vinha altamente influenciada por todo o cinema que acontecera antes. Incluía pessoas como Martin Scorsese, Steven Spielberg, Michael Cimino, Francis Ford Coppola e William Friedkin(*). Todos eles marcaram a época e o cinema, mas vários acabaram por ter carreiras irregulares. Bogdanovich nunca mais atingiu o nível dos seus três primeiros filmes: este Paper Moon, de 1973, e os anteriores The Last Picture Show, de 1971 (com uns muito novos Jeff Bridges, Cybill Sheperd e Cloris Leachman) e What's Up, Doc?, de 1972, que (tanto quanto recordo, dado não o ver há uma eternidade) conseguia tornar Barbra Streisand suportável. (As minhas desculpas à verdade histórica, se por acaso a minha memória se adocicou com o tempo, e aos fãs da senhora, em qualquer circunstância.)

 

Apesar da situação em que Addie se encontra, Paper Moon não é sentimentalista. Pelo contrário, todo o filme é perpassado por uma recusa em vitimizar Addie. A Grande Depressão fizera os tempos difíceis para quase toda a gente. Outras crianças haviam perdido os pais ou, mantendo-os, sofriam maiores dificuldades. A própria Addie tem consciência disto. Sabe que, em termos puramente materiais, não se está a sair mal. Chega mesmo a propor-se ajudar pessoas em pior situação - enquanto simultaneamente cobra mais pelas bíblias àquelas que lhe parecem estar bem na vida (Moses detesta ambas as ideias, no primeiro caso por não querer dispensar dinheiro, no segundo por recear que o excesso de ganância faça com que sejam apanhados - e também por a ideia não ter sido dele). Esta falta de sentimentalismo estende-se a várias cenas politicamente incorrectas: a polícia dispara sem pejo sobre um veículo onde se encontra uma criança, Addie fuma (é verdade que, de início, contra a vontade de Moses) e viaja nos automóveis de um modo que só pode causar desconforto nestes tempos de cadeirinhas obrigatórias e sistemas Isofix. Ainda que também sirvam propósitos de comédia (mas a comédia é uma recusa do sentimentalismo), estas cenas contribuem para situar a acção numa época e para deixar no espectador uma imagem indelével de Addie Loggins. De certo modo, Addie (esplêndida Tatum O'Neal ainda com tudo pela frente) poderia ser uma personagem de Dickens: agreste, voluntariosa, manipuladora, sincera, indomável, carente. Uma criança orfã a fingir de adulto em tempo de dificuldades.

 

Uma das cenas mais difíceis de rodar. Filmada em contínuo numa estrada deserta, bastava um erro no diálogo para ter de voltar-se ao início.

 

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(*) Os dois últimos foram produtores executivos de Paper Moon.

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