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Delito de Opinião

Pano para mangas (2ª parte)

Cristina Torrão, 15.10.24

Ainda no rescaldo dos maus velhos tempos, mais umas palavrinhas:

“Mas agora é que é bom, com a censura do politicamente correcto e a comunicação social comprada por milhões de euros pelo manhoso António Costa, e os miúdos na escola a bater nos professores, os filhos a darem porrada nos pais ou a matá-los para lhes ficarem com o dinheirinho da pensão para a droga, com as pessoas a terem medo de sair de casa à noite para não serem assaltadas, espancadas ou mesmo mortas, e mais e muito mais de desgraças abrilinas que por preguiça mental aqui me nego a acrescentar”.

Compreendo a angústia deste comentador. E o que ele aponta não são falsidades. Já afirmar que se trata de “desgraças abrilinas” é um absurdo.

Antes do 25 de Abril, não sei se houve algum aluno a bater num professor. Mas os professores arreavam-lhes forte e feio. Desde pôr negras as canelas nuas das meninas, em pleno Inverno, com uma cana, a tareias de caixão à cova a rapazes e raparigas, muitas vezes, por ninharias. Além disso, antes do 25 de Abril também já havia filhos a darem porrada nos pais, ou a matá-los para lhes ficarem com o dinheiro (não seria para droga, mas, para o caso, é igual ao litro). E, já nessa altura, havia pessoas que tinham medo de sair de casa à noite: mulheres (infelizmente, continuam a ter razões para isso). A única diferença, entre antigamente e agora, é que existia a censura. Não era a do politicamente correcto. Essa, pelo menos, não nos impede de vir para aqui criticá-la, ou de dizer o que nos vai na cabeça. A censura, antes do 25 de Abril, proibia, na imprensa, tudo o que tivesse a ver com suicídios, criminalidade juvenil, pedofilia, incesto, abusos sexuais, violações, etc. Assim se criava a imagem do país pobre, mas honrado, o país dos «brandos costumes».

Acusaram-me de viver numa “bolha fofinha das mentiras oficiais”, mas, na verdade, Salazar e Marcelo Caetano eram especialistas na criação dessas bolhas. E em zelar para que não rebentassem. Nem que fosse a rebentar com seres humanos.

Alguns comentadores também sugeriram o espancamento de Maria Teresa Horta ter sido obra de radicais, agindo de forma independente. Tivessem sido eles identificados, teriam sido punidos legalmente. Porém, como aqui já transcrevi, Maria Teresa Horta diz, ainda hoje: «Ficámos convencidos, mesmo politicamente, de que eles eram legionários, a PIDE não trabalhava assim, não batia na rua. Não era o modo deles. Os legionários eram um braço fascista. Até hoje acho isto. Combinaram serem eles, saíra o livro e estavam ofendidos. Foi uma desgraça. Não fiquei deprimida, nada disso, a PIDE e os fascistas não têm esse poder sobre mim. Isso queriam eles, nem pensar.»

Os legionários eram um braço da PIDE, dispostos a fazer trabalhos sujos. E o espancamento de Maria Teresa Horta não teve a ver com as “Novas Cartas Portuguesas”. Teve a ver com um outro livro dela, publicado antes, com o título “Minha Senhora de Mim”. Tanto este, como as “Novas Cartas Portuguesas”, foram proibidos e confiscados, assim que chegaram às livrarias. Pelos vistos, essa proibição não chegou, no primeiro caso. O objectivo era obviamente intimidar a escritora, para que ela não voltasse a escrever algo do género.

Também muitos comentadores ficaram indignados por eu comparar a ditadura salazarista com a iraniana. Isto porque lhes dá muito jeito armarem-se em defensores das mulheres castigadas pelo regime iraniano. Além de aproveitarem para destilar o seu ódio figadal pelo Islão, julgam mostrar às feministas como elas estão erradas, quando os acusam de serem machistas. Não nego que a religião muçulmana sirva de pretexto para as ditaduras, as leis e os comportamentos mais abjectos. Mas também há o outro lado.

Malala Yousafzai, por exemplo, que, aos catorze anos, foi quase assassinada pelos talibãs, apenas por frequentar a escola. Não deixou de ser muçulmana. Apesar de apoiar a democracia, a liberdade, de viver na Europa Ocidental e cristã e de continuar a lutar pelos direitos das mulheres nos países islâmicos, não renega a sua religião e, pasme-se, continua a usar véu! Claro que não sou apologista da obrigação de usar véu. Mas também não apoio a sua proibição. Cada uma deve ter liberdade para decidir. O interessante é que já li comentários depreciativos sobre Malala Yousafzai, por aqui. Decerto, expressos por pessoas que, noutros tempos, se fartaram de a defender e elogiar.

Também me acusaram de esquecer que os homens eram igualmente censurados e castigados, no tempo do Estado Novo. Na verdade, já escrevi aqui, no Delito, e aqui, no meu blogue pessoal, sobre a repressão a que os opositores do regime estavam sujeitos, fossem homens ou mulheres.

Por outro lado, não costuma ser referenciado, pelos defensores das muçulmanas, que também os homens iranianos são espancados, presos, torturados e condenados à morte. E ninguém nos diz que também mulheres, que já sofreram às mãos desses ditadores, ou dos talibãs, renegassem a sua religião, caso lhes dessem oportunidade de viver em liberdade.

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