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Delito de Opinião

Pano para mangas (1.ª parte)

Cristina Torrão, 13.10.24

Por vezes, uma pessoa fica desanimada, pensa em desistir. Julga-se sozinha, sem apoios, e começa a duvidar da justeza do que pensa e escreve. Sei que há frequentadores do Delito que me odeiam, habituei-me a muitos tipos de ataques. Confesso, porém, que fiquei siderada com o teor de certos comentários a este postal. Já tinha contado com controvérsia, mas não deste calibre.

Felizmente, surge sempre uma luz, que nos devolve a esperança e nos confirma que vale a pena (sempre, como dizia o poeta). Desta vez, muita dessa luz veio na forma de um comentador (ou comentadora) anónimo.

Quem diria que violência exercida sobre uma mulher ainda causa tanta controvérsia? Quem diria que Maria Teresa Horta ainda gera tal impacto, passado tanto tempo?

Nesta primeira “manga”, venho, acima de tudo, fazer justiça a Patrícia Reis. Porque também ela foi criticada, muito me surpreendendo. Limitei-me a citar de um seu livro. A fim de não tornar o postal muito longo, fiz alguns cortes, porque, pensei eu, o essencial estava dito. Pretendia apenas chamar a atenção para um caso de violência, num regime ditatorial. Mais nada!

Pelos vistos, porém, as frases cortadas fizeram muita falta. Um colega de blogue decidiu comentar:

"Patrícia Reis escreve de forma atabalhoada e o excerto que publica é exemplo disso.
Maria Teresa Horta não é uma coitadinha, é uma mulher que teve acesso à imprensa, que publicou crónicas, que sabe escrever, qual a razão para nunca ter publicado um episódio tão traumático pela própria pena?

MTH terá cerca de 1.50 m e pesará cerca de 50 kg, seriam necessários dois homens para a imobilizarem? Deitarem-se sobre ela em simultâneo e espancarem-na ao mesmo tempo?

(…)

Acredito que o episódio aconteceu, não acredito que tenha acontecido como Patrícia Reis (PR) o descreve, por razões práticas. MTH terá referido esse episódio "en passant" e PR deu-lhe uma importância que ele não teve para a biografada, caso contrário, MTH teria escrito sobre ele.
Esse episódio é mais um exemplo de "wokismo" a mulher vítima da brutalidade masculina. A mesma tónica não é colocada em quem o salvou, um homem, um heróico vizinho do sexo masculino que arriscou a própria vida para a salvar e que a acompanhou de táxi para o hospital".

Ora, como Patrícia Reis escreve no prefácio deste livro (que não intitula "prefácio", mas "antes de tudo"), para escrever esta biografia, ela passou muito tempo com Maria Teresa Horta, as duas tiveram muitas conversas. E, como o comentador anónimo referido revela, Maria Teresa Horta já tinha descrito este espancamento numa entrevista dada a Ana Sousa Dias, publicada na LER, em Novembro de 2013. O comentador (ou comentadora) fez o favor de transcrever o excerto referente a este ataque, que, no essencial, não difere do relato feito por Patrícia Reis:

"Ana Sousa Dias - (Recebia) Insultos de ódio?
Maria Teresa Horta - De ódio. «A tua mulher é uma esta, uma aquela, a tua mãe é uma puta, uma desgraçada». Quando era eu a atender, desligava o telefone. Tive uma conversa com o Luís Jorge*, expliquei-lhe (a situação). Uma noite saí de casa para ir ter com o Luís, que estava no jornal. O Luís Jorge estava em casa da minha sogra. Nós morávamos no Bairro Social do Arco do Cego, que é muito solitário. Ia apanhar um táxi e um carro parado acendeu as luzes. Reparei, mas só depois pensei nisso. O carro veio atrás de mim, meteu pelo passeio e parou mais adiante. Saíram dois homens e eu podia ter fugido, mas não havia motivo para pensar que havia perigo. Avancei, eles ficaram à espera, pensei: «Que estranho, o carro vinha pelo passeio e parou ali.» Mal penso nisto, eles atiram-me ao chão, começam a bater-me com a cabeça no chão e a gritar: «Isto é para tu aprenderes a não escreveres como escreves.» Um senhor do bairro apareceu, pensou que me estavam a roubar. Eles meteram-se no carro, onde tinha ficado um, e vão desarvorados. Disse ao senhor o que se tinha passado, ele levou-me para casa e telefonou ao Luís. Depois levou-me para o Hospital de Santa Maria e o Luís foi lá ter. Fiz radiografias, não tinha lesões, voltámos para casa".

*filho de Maria Teresa Horta e de Luís de Barros que era, à altura, uma criança.

O episódio teve de facto importância na sua vida. Como a biografia explica, ele foi mesmo o motor para a escrita das Novas Cartas Portuguesas (para quem achar necessidade de provas, também posso transcrever essa passagem, numa terceira parte; talvez fiquemos com o pulôver completo).

Também o vizinho que ajudou Maria Teresa Horta merece destaque, na biografia. Por isso, cai por terra a tese "exemplo de wokismo". Para o provar, decidi transcrever toda a cena, com citações de palavras da própria Maria Teresa Horta, assim nos transportando para as conversas que ela teve com Patrícia Reis, provando que não referiu o episódio "en passant":

"Quando chegou à curva da Rua Caetano, viu um carro estacionado, à sua frente, que acendeu as luzes. Teresa não lhe deu importância. O automóvel arrancou. Subitamente, em pânico, percebeu que vinha na sua direcção, que a ideia era esmagá-la contra a parede. Felizmente estava perto de um dos candeeiros de rua e conseguiu evitar o embate do carro. «Para trás eu não podia ir, não podia correr para casa. Portanto tinha de andar para a frente, para a estátua, que era onde eu queria chegar, na esperança de que existisse por ali mais gente». Teresa apressou o passo, quase a correr. Ouviu as portas do automóvel baterem, dois homens vieram na sua direcção, um outro ficou dentro do automóvel que se movia agora devagar, sempre na sua direcção. Os dois homens alcançaram-na. Deitaram-na ao chão. Teresa caiu de costas e eles ficaram em cima dela a espancá-la. Disseram-lhe: «Isto é para aprenderes a não escreveres como escreves». Pareceu-lhe que tudo aquilo durou horas, os murros, os tabefes, mas devem ter sido minutos. Cada vez que se queria levantar, batiam-lhe na cara, na cabeça. Teresa sentiu que tinha a cabeça aberta atrás e à frente, havia sangue e um prenúncio de várias dores no corpo. Um vizinho do bairro começou a subir a rua, gritou, pensava que eram ladrões. Os dois homens aperceberam-se da sua presença e entraram no automóvel. O trabalho estava feito. O vizinho gritou por ajuda. Teresa recorda-se de o ouvir dizer: «O que é isto?! Roubaram-na, roubaram-na, que horror... Está toda cheia de sangue!» O vizinho não a queria deixar sozinha. Teresa insistiu que ele fosse a casa, telefonar a Luís de Barros, receava que já tivesse saído do jornal e só queria ver o marido. Felizmente não foi o caso e Luís de Barros encontrou-se com ela já no Hospital de Santa Maria. «Ficámos convencidos, mesmo politicamente, de que eles eram legionários, a PIDE não trabalhava assim, não batia na rua. Não era o modo deles. Os legionários eram um braço fascista. Até hoje acho isto. Combinaram serem eles, saíra o livro e estavam ofendidos. Foi uma desgraça. Não fiquei deprimida, nada disso, a PIDE e os fascistas não têm esse poder sobre mim. Isso queriam eles, nem pensar.»

Teresa foi para o Hospital de Santa Maria de táxi com o vizinho. Possui uma lembrança muito vaga da viagem até lá. Fez radiografias, levou uma série de pontos na cabeça. Tinha o corpo coberto de hematomas, as pernas e os braços com escoriações. Não se recorda de chorar, nunca foi muito de chorar. «Uma escritora não tem de ser sensata nem prudente, tem de ter consciência do que se faz, mas não se autocensura.»

Sobre tudo isto conversou com Maria Isabel Barreno e com Maria Velho da Costa."

(pp. 220/221)

Chamo a atenção para o facto de que passagens mais confusas em toda esta descrição (também na entrevista da LER) terão a ver com o estado de choque de Maria Teresa Horta. Ou estavam à espera que uma pessoa, no meio de um ataque deste calibre, teria, mais tarde, discernimento para o descrever cirurgicamente?

 

Adenda: o meu colega de blogue visado neste postal é o Pedro Oliveira (aliás, o facto de eu não o ter identificado, não significa que tal teria de ficar em segredo, basta ir à outra publicação para o verificar). Entretanto, já fizemos as pazes. No fundo, fomos os dois levados pela dinâmica negativa que se formou nessa caixa de comentários. Não nego que entrei em stress. E hoje, mais calma, respondi-lhe num comentário que ele perfeitamente aceitou. Foi mais ou menos o conteúdo desse comentário que usei neste postal.

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