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Delito de Opinião

Paixão e sangue

Alexandre Guerra, 02.10.17

Este texto não pretende identificar os culpados por aquilo que se tem passado em Espanha, mas propõe-se a fazer uma leitura mais fria e racional, porventura, mais cínica e politicamente incorrecta dos acontecimentos em questão. Governo central, de um lado, e Generalitat, do outro, terão, eventualmente, razões várias para justificar os seus actos, o que não quer dizer que sejam legítimas ou até mesmo aceitáveis para um observador externo. Mas o que interessa mesmo é analisar a forma como os seus intervenientes olham para os argumentos apresentados por cada um dos campos em confronto. E, sobretudo, perceber-se até que ponto as ideias em confronto são de tal maneira mobilizadoras para que o povo saia à rua em “armas”, disposto a dar a vida pela independência. A secessão de uma região é nada mais menos do que uma questão de sobrevivência de um Estado, é um assunto literalmente de vida ou de morte. Fazer uma ruptura secessionista pacífica dentro de um Estado de Direito com um quadro institucional instituído é algo, por definição, contraditório. É um contrassenso, porque nenhum Governo aceita perder parte do seu território a não ser que tal solução lhe seja imposta pela persuasão da força. Tem sido assim ao longo da História. A “via negocial” é um eufemismo para aquilo que costuma ser a resignação forçada por parte de um Governo que, em determinada altura da sua história, seja obrigado a abdicar de parte do seu território.

 

O referendo da Catalunha foi uma farsa, não tanto pelo processo em si (totalmente descredibilizado), mas como elemento catalisador de uma independência que, a acontecer, deixaria a Espanha prostrada. Um movimento destes, que infligiria um rude golpe na existência daquele Estado, dificilmente aconteceria sem paixão e sangue. O que aconteceu no Domingo foi mais um espectáculo mediático, numa sociedade ocidental já pouco habituada a fracturas sangrentas no seu seio no que a nacionalismos diz respeito. Falou-se do excesso de violência no dia do referendo, com aquelas imagens sentimentais que hoje em dia facilmente se propagam pelas redes sociais, do polícia a ser abraçado pelo cidadão ou da manifestante a oferecer uma flor a um agente da autoridade. Pelo meio, mostram-se umas cabeças partidas ou uns arranhões e está feita a encenação para as manchetes dos jornais. Pois a leitura que se deve fazer é precisamente a contrária, ou seja, para o caldeirão que estava a ser criado, e tendo em conta o histórico de sangue da história espanhola, a violência foi praticamente inexistente (e ainda bem). A maior parte dos oitocentos feridos ou são ligeiros ou são ataques de ansiedade.

 

A independência de uma região é coisa séria, não vai lá com likes no Facebook, tweets ou “manifs” de jovens urbanos e elites intelectuais que abraçam uma causa que nem eles próprios compreendem o seu alcance. E não vai lá com líderes que não percebem que nem todo o povo está com eles nos intentos secessionistas. Avançar com uma “brincadeira” destas é de uma irresponsabilidade quase criminosa, porque acaba por criar clivagens dentro da própria sociedade, neste caso a catalã. A independência de uma região deve ser sempre um acto civilizacional, de progresso, de crença positivista nos direitos humanos e nunca um processo de burocracias políticas e judiciais ao serviço do capricho de alguns. A independência é o fim último, almejado para que um povo alcance um estádio de libertação com vista ao bem comum. E tal só pode acontecer com muito sacrifício, crença, empenho total e, muito importante, com a inspiração dos seus líderes. Alguém acredita que o senhor Carles Puigdemont estaria disposto a dar a vida pela independência da Catalunha? Poderá ser exagerada esta questão, mas a verdade é que no passado já tantos outros deram as suas vidas para ver os seus territórios independentes (e não se está a falar de um passado assim tão distante, mesmo na Europa). A História tem demonstrado que uma independência só se consegue com paixão e sangue. E isso os catalães demonstraram no Domingo que não estão dispostos a dar.

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