Outras galáxias muito distantes (5)
Apesar da ideia que se possa retirar da televisão, do cinema e da Internet por estes dias, na ficção científica a chamada space opera não se resume a Star Wars (ou a Star Trek, já agora). Pese embora a sua popularidade, a franchise multimilionária criada por George Lucas em 1977 está a anos-luz de ser o pináculo criativo ou conceptual de um género que, muito antes de encantar nas salas de cinema, já encantava nas páginas das pulps norte-americanas. Para quem quiser descobrir galáxias tão ou mais fascinantes na literatura e na banda desenhada, aqui deixarei algumas sugestões de leitura ao longo dos próximos dias.
Hyperion / The Fall of Hyperion
Chaucer e Keats no espaço
Ao contrário do que se possa pensar, a produção literária da ficção científica na década de 80 não se resumiu ao neo-noir tecnológico do cyberpunk (por mais vasta que tenha sido a sombra de Neuromancer). Na sombra das especulações cibernéticas de William Gibson, Bruce Sterling e Pat Cadigan a vetusta space opera ia sendo recuperada e reinventada, com títulos como The Snow Queen de Joan D. Vinge, Downbelow Station de C.J. Cherryh (ambos premiados com o prémio Hugo em 1981 e 1982 respectivamente), e com o início de sagas que marcaram o género, como a Culture de Iain M. Banks ou a Vorkosigan Saga de Lois McMaster Bujold. Mas é já na transição dos anos 80 para a década de 90 que foi publicado um dos textos mais ambiciosos e bem conseguidos que o género já conheceu: o díptico Hyperion e The Fall of Hyperion, do norte-americano Dan Simmons.
O título soará familiar a quem conhecer a poesia de Keats - e, de facto, o poeta romântico é uma presença constante na trama que Simmons tece num futuro no qual a Humanidade alcançou a Singularidade e expandiu-se por inúmeros planetas da galáxia com a ajuda das inteligências artificiais conhecidas como Technocore (serei intencionalmente vago em alguns momentos - é difícil falar destes dois livros revelar demasiado). Mas essa expansão não foi pacífica - e, de facto, no momento em que a trama arranca a Humanidade prepara-se para a guerra com os enigmáticos Ousters. Nas vésperas dessa guerra, sete peregrinos são seleccionados para fazer a derradeira peregrinação a Hyperion, um planeta remoto e que não teria nada de extraordinário se não possuísse duas coisas únicas: as lendárias "Time Tombs", um conjunto de monumentos localizados num vale onde o tempo se desloca do futuro para o passado, e o seu guardião, o não menos lendário Shrike, uma monstruosidade bio-mecânica feita de metal e coberto de espinhos. Reza a lenda que o Shrike responderá à questão de um dos peregrinos, e matará os restantes...
Os sete peregrinos não se conhecem, nem sabem por que motivo foram seleccionados, mas cada um tem um motivo para estar naquele lugar naquele momento - e Simmons evoca Chaucer para construir em Hyperion um mosaico fascinante ao estilo dos célebres Canterbury Tales. Cada peregrino (excepto um) contará a sua história individual durante a longa viagem até às Time Tombs de Hyperion, formando um vasto puzzle do qual o Shrike será uma peça fundamental. Simmons, porém, leva mais longe a ideia do mosaico, desenvolvendo cada história de forma muito particular em termos temáticos. Um dos peregrinos narra uma história de horror; outro, um conto de ficção científica militar a aludir a Starship Troopers. Há um drama familiar, uma intriga política, uma aventura cyberpunk e até uma história época que abarca vários séculos e várias etapas da expansão da Humanidade pelas estrelas. Hyperion não terá sido o primeiro romance de ficção científica a empregar uma estrutura narrativa em mosaico, mas poucos o terão feito com a mesma ambição e com o mesmo engenho, conseguindo mostrar múltiplas facetas do género enquanto desenvolve uma trama intensa com o arrojo conceptual que faz parte da matriz da space opera.
Se Hyperion olha para o passado separado das várias personagens para contextualizar o presente da trama, The Fall of Hyperion encarrega-se de desenvolver essa trama - de forma inevitavelmente mais linear, é certo, mas nem por isso menos interessante. Cada uma das histórias do primeiro volume suscitou mais perguntas do que respostas, e cabe a esta segunda parte explorar o destino dos peregrinos e da sua visita ao Shrike. Simmons faz esta exploração com mestria, polvilhando-a de referências literárias e religiosas que convidam à releitura, sem nunca perder de vista a história que pretende contar. O resultado é aquela que será talvez a minha obra preferida dentro do género: um par de livros excepcionais tanto para os leitores mais experientes como para quem ainda não se aventurou na ficção científica.