Outras galáxias muito distantes (2)
Apesar da ideia que se possa retirar da televisão, do cinema e da Internet por estes dias, na ficção científica a chamada space opera não se resume a Star Wars (ou a Star Trek, já agora). Pese embora a sua popularidade, a franchise multimilionária criada por George Lucas em 1977 está a anos-luz de ser o pináculo criativo ou conceptual de um género que, muito antes de encantar nas salas de cinema, já encantava nas páginas das pulps norte-americanas. Para quem quiser descobrir galáxias tão ou mais fascinantes na literatura e na banda desenhada, aqui deixarei algumas sugestões de leitura ao longo dos próximos dias.
The Snow Queen
Space Opera no feminino
The Snow Queen, de Joan D. Vinge, é um caso curioso: foi publicado em 1980, no mesmo ano da estreia de The Empire Strikes Back, venceu o prémio Hugo para melhor romance no ano seguinte, gerou duas sequelas e uma prequela... e, trinta anos volvidos, numa época de pleno ressurgimento da space opera na literatura, na banda desenhada e nos meios audiovisuais, e quando o debate sobre as mulheres e o feminismo na ficção científica se tornou mais pertinente do que nunca, este livro, em tempos descrito como um "Star Wars feminista", está praticamente esquecido.
E a descrição tem algum mérito, mesmo sendo o esquecimento tão injusto. Para todos os efeitos, The Snow Queen terá talvez sido uma das últimas space operas relevantes desenvolvida com os moldes mais ou menos tradicionais das histórias épicas de outros tempos: tal como George Lucas, Vinge foi beber à "jornada do herói" de Joseph Campbell e aplicou a teoria a uma galáxia distante povoada por civilizações fascinantes e repleta de mitos de uma época dourada antiga, quase lendária. É muito possível, porém, que as semelhanças terminem aí. Se por um lado a sua grande influência narrativa não residiu nos westerns norte-americanos mas no conto clássico de Hans Christian Andersen, por outro lado The Snow Queen não tem qualquer ambiguidade no seu género: ao contrário de Star Wars, The Snow Queen é assumidamente ficção científica, com um rigor inatacável na construção do seu universo ficcional: o planeta Tiamat, onde decorre a maior parte da trama, não se resume a um único cenário com um clima uniforme: possui climas variados e regiões distintas, dos inúmeros arquipélagos tropicais do hemisfério Sul ao continente montanhoso e gelado do Norte. E os vários elementos científicos e tecnológicos que são apresentados estão longe de ser meros adereços, sendo fundamentais para a narrativa e ilustrando na perfeição a célebre máxima de Arthur C. Clarke: qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.
E, claro, há a questão feminista. Vinge até pode ter seguido, mesmo que em traços largos, a lição de Campbell, mas optou por escrever antes a jornada de uma heroína, Moon, cujo percurso a levará inevitavelmente ao confronto com Arienrhod, a Rainha de Gelo do título, monarca absoluta de Tiamat durante o inverno de 150 anos que as mecânicas orbitais do planeta impõem aos povos que nele habitam (estes detalhes nunca são irrelevantes aqui). E se podemos encontrar na Moon das primeiras páginas o arquétipo do jovem inocente que cresceu num lugar remoto sem fazer ideia de quão longe o destino a levará, já em Arienrhod está presente uma ambiguidade rara em romances e personagens desta natureza: em muitos momentos parece uma vilã convencional na ambição e na corrupção, mas Vinge escreve-a com maior profundidade, e os seus objectivos em momento algum são tão simples como aparentam. A Moon e a Arienrhod juntam-se personagens como Jerusha, uma inspectora policial num mundo maioritariamente masculino, ou Gundhalinu, um jovem inspector cuja classe social das suas origens contrasta com o seu destacamento em Tiamat. E muitas outras, num elenco vasto para o qual a diversidade - de género, de cor da pele, de estratos sociais e de orientações sexuais - não serve apenas para preencher uma qualquer quota (é possível que o tema não tivesse no início dos anos 80 a pertinência que tem hoje), mas para tornar a civilização composta pelos vários mundos apresentados mais verosímil. Não deixa de ser interessante notar que algo tão evidente tenha demorado tanto tempo a ser interiorizado por um género no qual a construção de mundos assume tanta importância.
The Snow Queen foi o primeiro livro de ficção científica que li, algures entre 2001 e 2002 - e, à época, recuperou não só o meu gosto pela leitura como me fez descobrir um género que julgava praticamente exclusivo do cinema, da televisão e de alguma banda desenhada. E é curioso notar como contribuiu de forma acidental para a minha resposta adversa ao hype em redor de The Force Awakens há dois anos. O marketing da Disney, sintonizado com o zeitgeist, vendeu bem o seu peixe: temos agora uma mulher como protagonista e um stormtrooper afro-americano! Para o universo criado por Lucas isto talvez tenha sido uma novidade (e a representação é sempre salutar, acrescente-se), mas um leitor mais atento ao género não terá deixado de reparar que lhe serviam comida requentada. Eu reparei: muito antes da Rey de Daisy Ridley e do Finn de John Boyega (ambos excelentes, note-se) já me tinha maravilhado havia muito com a determinação de Moon e com o carácter de Gundhalinu (cujo papel secundário no primeiro livro se tornou principal nos seguintes). Afinal, a diversidade não chegou às galáxias distantes só no século XXI.