Outras formas de turismo: repensar o acto de viajar
Em 2008, planeei pela primeira vez uma viagem totalmente com recurso à Internet. É certo que nos anos imediatamente anteriores me socorria de uma agência de viagens online (que não era portuguesa). Mas só quando quis ir fazer uma viagem pela Costa Rica e não encontrei nenhum programa de operador turístico que me levasse aonde eu queria e durante o tempo que eu queria é que me decidi a organizar tudo por minha conta e risco. E, com uma pequena excepção, não voltei a viajar de outro modo.
Olhando para trás, no que toca a viagens, tenho feito um percurso inverso ao que seria mais provável hoje em dia. Quando comecei a viajar com regularidade para fora de Portugal, nos já idos anos 90, não era concebível reservar uma viagem de avião sem ser através de uma agência de viagens. É certo que de carro ou comboio podíamos partir à aventura sem nada marcado, mapa na mão e procurando alojamento nos sítios em que decidíamos parar. Foram várias as viagens que fiz em Espanha e França com pouco mais do que uma vaga ideia de querer ir ver isto ou aquilo. E corriam geralmente bem – uma avaria ocasional que nos atrasava os planos, ter de passar uma noite no carro ou num alojamento menos confortável por não encontrar outro melhor. Nada que me estragasse o prazer de viajar.
Mas se queríamos ir para destinos mais longínquos, e a não ser que tivéssemos todo o tempo do mundo para partir à descoberta e nenhumas responsabilidades a prenderem-nos para voltar, então tínhamos mesmo de recorrer às agências de viagem e conformar-nos com o que elas nos ofereciam. Hoje, numa altura da vida em que já seria compreensível (e talvez expectável) querer sopas e descanso e embarcar em cruzeiros, ou ir para resorts, ou que me fizessem a papinha toda e apresentassem viagens prontas a consumir, estou quase completamente no espectro oposto. Não virei mochileira (embora ande muitas vezes de mochila às costas), mas só vou aonde quero e da forma que quero, fugindo das viagens estereotipadas e, dentro do possível, das épocas mais pressionadas pelo turismo. Não é que não vá, ou não queira ir, àqueles lugares de que toda a gente gosta. Mas não aprecio confusões, e portanto tento evitá-las. Se há tanto para conhecer por esse mundo fora, porque é que havemos de ir todos para o mesmo sítio ao mesmo tempo?


Nos últimos 60 anos, as viagens “democratizaram-se”. O que antes só era acessível para quem ou fosse muito endinheirado, ou tivesse uma alma hippie, hoje em dia é mais ou menos alcançável para uma boa fatia da população mundial. Por um lado, as plataformas online tornaram possível a muita gente, como eu, viajar com mais facilidade; por outro, a maior oferta de alojamentos de vários tipos e de transporte (sobretudo na aviação) fez reduzir os custos das viagens, de um modo geral. As redes sociais encarregaram-se de alimentar e acelerar as vontades (por vezes apenas latentes) de ir mais longe, mais alto, mais fundo – ou simplesmente de ir passar férias num sítio que não o do costume, de preferência num daqueles em que é possível tirar belas fotos sem grande esforço nem sapiência.
Fonte (por vezes principal) de rendimento, emprego e desenvolvimento em muitos países, esta revolução no turismo trouxe também problemas evidentes: os destinos cheios de resorts uniformizados, a proliferação de pacotes de “tudo incluído” e a febre dos locais “instagramáveis” dominam o sector. Para muitos, viajar deixou de ser uma forma de descoberta cultural e pessoal para se tornar num acto performativo, mais voltado para acumular carimbos no passaporte ou quantidades de países visitados do que para viver experiências autênticas.
O turismo de massas tem vindo a exacerbar, a nível mundial, várias questões ambientais e sociais. Do ponto de vista do ambiente, não podemos ignorar a poluição causada pelo transporte aéreo e marítimo, a sobrecarga de ecossistemas frágeis, o desperdício de recursos naturais como água e energia, ou o aumento da produção de resíduos. Socialmente, contribui para a sobrecarga de infra-estruturas em cidades icónicas, a gentrificação de bairros históricos, o aumento do custo de vida para as populações locais, a exploração laboral no sector do turismo e a degradação da autenticidade cultural devido à excessiva comercialização. Além disso, ao comprometer a qualidade de vida em destinos muito procurados, a afluência descontrolada de turistas pode gerar (e tem gerado) tensões com as comunidades locais.
E eu encontro-me agora, com este meu grande apetite por viajar, num dilema: uma vez que faço parte do problema, como posso também fazer parte da solução? Como posso conciliar a minha paixão por conhecer o mundo (enfim, parte dele, pelo menos) com o meu desejo de contribuir o mínimo possível para piorar situações que são já por si insustentáveis? Sei que não sou a única a preocupar-me com estas questões, e não tenho qualquer pejo em defender que está na altura de repensar o que queremos quando viajamos, e qual a melhor maneira de o fazer. Há vida para lá dos formatos padronizados de viagem, e outras formas de turismo que podem ser igualmente (ou ainda mais) recompensadoras.
Turismo sustentável: uma responsabilidade colectiva
O turismo sustentável é uma abordagem que visa equilibrar a satisfação dos viajantes com a protecção do meio ambiente e o bem-estar das comunidades locais. O conceito surgiu como resposta primeira e directa aos efeitos negativos do turismo de massas. Através de práticas conscientes, é possível minimizar a pegada ecológica e maximizar o impacto positivo nos destinos visitados.
Por exemplo, optar por transportes menos poluentes, como os comboios, é uma forma de reduzir as emissões de carbono associadas às viagens de avião. A escolha de alojamentos amigos do ambiente, que recorrem a energias renováveis e têm programas de reciclagem, é outra medida concreta. Para além disso, a consciência ambiental deve estender-se ao consumo local: privilegiar mercados, restaurantes e lojas geridos por comunidades locais fortalece as economias locais sem explorar os recursos naturais de forma excessiva. Já falei mais em detalhe sobre esta questão aqui.
Muitos destinos também estão já a adaptar-se a estes cânones. Exemplos como as Galápagos ou o Butão, que limitam o número de turistas anuais, demonstram que é possível preservar ecossistemas sensíveis ao mesmo tempo que se oferece uma experiência única e com qualidade. Esta limitação e qualidade envolvem custos – o que, por sua vez, dá origem a outro tipo de questões: num mundo que deveria ser cada vez mais democrático e acessível, é justo vedar certos destinos a quem tem menos posses, mesmo que com base em motivos nobres? Nesta como noutras áreas, não é fácil encontrar um equilíbrio.
Turismo de proximidade: redescobrir o que está perto
A pandemia que obrigou ao fecho de muitas fronteiras em 2020-21 fez-nos reapreciar o turismo de proximidade. Trata-se de valorizar o que está ao nosso alcance, explorando regiões menos conhecidas e redescobrindo a cultura e a natureza locais. Além de reduzir as deslocações de longa distância, que têm um elevado custo ambiental, o turismo de proximidade ajuda a descongestionar os destinos demasiado populares.
Portugal tem aproveitado esta onda para tentar dar vida a zonas do país que estavam a ficar desertificadas. É um alento algo artificial e que nem sempre aproveita os recursos e modos de vida tradicionais, mas se feito de forma consistente e pensada, pode trazer mais benefícios do que desvantagens. Visitar lugares que nos estão mais próximos permite não apenas conhecer melhor o património local, mas também reduzir custos e apoiar pequenas economias regionais.
Para além disso, e mais do que só por uma questão de conveniência, o turismo de proximidade também convida a uma reflexão: será que precisamos de atravessar o mundo para encontrar beleza e significado?
Turismo comunitário: viajar com impacto social
O turismo comunitário coloca as populações locais no centro da experiência turística. Em vez de grandes cadeias hoteleiras ou operadores multinacionais, esta proposta apoia-se em iniciativas lideradas por comunidades que partilham a sua cultura, história e recursos de forma autêntica.
Por exemplo, no Brasil, certas comunidades (na Amazónia e no Maranhão, só para citar duas regiões) oferecem programas de turismo que combinam aprendizagem cultural e preservação ambiental. Em África, algumas aldeias promovem safaris comunitários, onde os lucros são reinvestidos na educação e na saúde. Estes modelos não só geram receitas, como também reforçam a autonomia das populações locais.
Pela nossa parte, neste tipo de viagens adquirimos uma percepção mais imersiva do destino e temos a oportunidade de contribuir para um impacto positivo. É uma forma de turismo que reforça valores de inclusão, diversidade e respeito, essenciais num mundo cada vez mais globalizado.
Turismo lento: a arte de viajar devagar
A pressa para visitar o maior número de lugares no menor tempo possível leva à superficialidade das experiências. O turismo lento (“slow travel”) propõe um ritmo diferente: permanecer mais tempo num destino, conhecer melhor a cultura local e estabelecer ligações autênticas.
Podemos, por exemplo, optar por alojar-nos em casas de famílias locais, aprender a cozinhar pratos típicos ou participar em festividades tradicionais. Viajar devagar também beneficia o meio ambiente, ao reduzir as deslocações frequentes e o consumo excessivo de recursos. Além disso, promove uma maior empatia cultural e dá-nos a possibilidade de regressarmos à nossa rotina com memórias mais significativas.

Turismo regenerativo: deixar os lugares melhores do que os encontramos
O turismo regenerativo é um passo à frente no que toca à sustentabilidade. Em vez de apenas minimizar impactos negativos, procura transformar os destinos, regenerando ecossistemas e comunidades. É um conceito que nos desafia a não sermos apenas consumidores, mas também agentes de mudança positiva.
Como exemplo, os projectos de reflorestação em áreas desmatadas ou as iniciativas de conservação marinha que permitem que nós, turistas, contribuamos activamente para a protecção ambiental. No âmbito social, existem muitos programas que incluem voluntariado em escolas, ou workshops que ensinam e ajudam a preservar tradições culturais.
Esta abordagem exige um compromisso mais profundo, mas as recompensas são igualmente elevadas: a satisfação de saber que a nossa presença não apenas preservou, mas também enriqueceu o lugar visitado.
Viagens conscientes e financeiramente razoáveis
Viajar não precisa de ser sinónimo de grandes despesas. Um dos pilares do turismo consciente é a gestão responsável dos recursos financeiros, tanto dos nossos, que viajamos, quanto dos daquelas comunidades que nos recebem.
Optar por acomodações geridas por locais, usar transportes públicos ou partilhados e procurar experiências gratuitas ou de baixo custo são alguns exemplos de escolhas inteligentes. São gestos que, além de evitarem despesas desnecessárias, ajudam a redistribuir os benefícios económicos de forma mais justa.
Neste aspecto, é essencial termos algum cuidado no planeamento da viagem: evitar épocas de alta procura pode significar preços mais acessíveis e uma experiência mais tranquila, com a possibilidade de interacções mais genuínas. Viagens conscientes também desafiam a ideia de que os destinos famosos são necessariamente os melhores. Muitos lugares menos conhecidos oferecem vivências igualmente recompensadoras e até mais interessantes, a um custo menor.
Turismo cultural e educacional: enriquecer o espírito
Uma viagem não é apenas uma deslocação física e geográfica; é sobretudo (pelo menos para mim) um convite à transformação pessoal. O turismo cultural e educacional procura oferecer experiências que ampliem horizontes, seja através da aprendizagem de uma nova língua, da participação em oficinas de artesanato ou da visita a museus e monumentos históricos – isto só para citar algumas possibilidades atractivas.
Estes momentos não só nos tornam mais ricos, como também reforçam a importância de preservarmos o património cultural para gerações futuras. E, mais ainda, reforçam em nós o respeito pela diversidade cultural e podem ajudar-nos a desconstruir preconceitos.
Uma experiência educativa pode ser algo tão simples quanto participar numa vindima ou assistir a uma tradição religiosa. Estas vivências são muitas vezes mais autênticas e memoráveis do que uma fotografia tirada num ponto turístico cliché.
Combater o excesso de turismo: procurar alternativas
O excesso de turismo (“overtourism”) é um dos grandes desafios da actualidade, e para combater este problema – ou pelo menos tentar não contribuir para ele – é essencial repensarmos os nossos comportamentos enquanto viajantes.
Escolher destinos alternativos é uma solução simples e eficaz. Procurar cidades menos famosas, lugares menos congestionados, ir àquele sítio que foi aconselhado por alguém que vive lá perto, em vez de saltar de spot “instagramável” para monumento hiper conhecido sem qualquer paragem pelo caminho.
De cada vez que leio uma notícia sobre habitantes de uma cidade revoltados contra o excesso de turismo, ou vejo uma foto de um lugar onde as pessoas se acotovelam para tirar uma selfie, ou dou de caras com a foto de um sítio em que já estive e mal o reconheço, tal a quantidade de efeitos e filtros aplicados para ser mais apelativo às visualizações, não consigo deixar de reflectir em como o consumismo também já se instalou no acto de viajar. Será que precisamos mesmo de visitar todos os pontos turísticos de uma determinada cidade ou região, só porque são famosos? Será que é mesmo necessário ir aonde toda a gente vai? Se é para ser trendy, então porque não substituir o FOMO (“fear of missing out”) pela JOMO (“joy of missing out”)? (Os puristas da língua portuguesa que me desculpem tanta expressão inglesa, mas o português não é célere a adaptar-se à profusão de novidades linguísticas…)
Um novo paradigma para viajar
Viajar é mais do que visitar lugares: é um privilégio, uma forma de vermos por nós próprios, sem interposta pessoa, o que se passa para lá dos muros do nosso quintal, e uma oportunidade para crescermos como seres humanos e como cidadãos – ou, como tantas vezes digo, uma maneira de afastar as palas dos olhos. No entanto, este privilégio vem com responsabilidades. Ao adoptarmos formas de viajar que fogem da corrente dominante, que são mais pensadas, não estamos apenas em busca de viagens mais satisfatórias para nós. Estamos a cuidar do planeta e a construir um futuro mais justo e inclusivo para todos. Viajar menos ou de outra maneira, mas melhor, pode ser a resposta para um turismo mais consciente e justificável. A escolha está nas nossas mãos.
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