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Delito de Opinião

Otelo

José Meireles Graça, 25.07.21

Hoje é dia de lembrar o herói de Abril para toda a esquerda, e de palavreado inconsequente para a maior parte da chamada direita. As ideias que Otelo amassou para o país eram uma amálgama de guevarismos delirantes ao serviço de uma imensa vaidade, um alto grau de inconsciência e uma teimosa estupidez. Este aspecto, a estupidez, que o levava a asneirar com grande suficiência se inquirido fosse sobre o que fosse, não fará parte dos necrológios, como não fará a sua fria crueldade nem os assassinados pelas FP25, senão de forma enviesada. “Deus tenha misericórdia da sua alma”, disse o meu amigo João Távora. João é um católico fervoroso, e respeitador da convenção segundo a qual não se diz mal dos defuntos no dia do seu passamento. Eu não sou nem uma coisa nem, em se tratando de figuras históricas, a outra. Para me associar à contenção fora preciso que em algum momento este triste exemplar de homem tivesse mostrado alguma forma de arrependimento.

Há pouco tempo, saiu um livro que faz ver Otelo à luz que merece. Para quem viveu aquela época lembra factos soterrados e traz alguns novos; para quem não viveu a “gesta” do 25 de Abril e a primeira quinzena de anos que se lhe seguiu, desvenda o sinistro projecto, e as proezas criminosas, do herói que hoje figura nos ditirambos de quem tem banca na opinião oficial e oficiosa, e no comunicado da presidência da República, caracteristicamente inócuo – se um asteróide atingisse o Alentejo, causando milhares de mortos e feridos, Marcelo associar-se-ia às famílias na sua dor, indo proporcionar-lhes selfies para pôr nas salinhas de entrada, e felicitaria o SNS por ter adequados stocks de mercúrio-cromo.

Nada disto tem, para o futuro, mais importância do que a que têm as pequenas histórias. E Otelo só não se juntará à galeria dos Fuas Roupinho, Hermenegildo Capelo, ou Marcelino da Mata, porque nenhum destes, ou dos outros heróis portugueses, ficou conhecido pela sua vaidade nem por ser depositário de doutrinas dementes em nome das quais estivesse disposto a praticar crimes.

O que deve suscitar reflexão é o algodão em rama opinativo: não tanto o do dia de hoje, que se justifica pelo respeito aos costumes, mas o que se adivinha. Otelo foi condenado, num processo em que ficou abundantemente provada a sua responsabilidade num projecto terrorista que se traduziu por assassínios, assaltos e tropelias menores, num tempo em que as instituições democráticas já estavam a funcionar, e foi indultado e amnistiado muito antes do fim do cumprimento da pena.

As razões para o indulto e a amnistia que as escabiche quem tiver curiosidade de procurar nos porões da história recente. As decisões foram legais, e assentavam num desejo de “pacificação” por uma banda (isto é, a recuperação para o jogo democrático das correntes de extrema-esquerda), e prémio ao estratega do golpe militar por outro: devemos-te o regime, toma lá um perdão, e ficamos quites.

Bom negócio, sem dúvida, para quem o aprovou, o PS e o PCP, sob o patrocínio de Mário Soares. Ficou claro então, como já havia ficado antes, e viria a ficar depois, que a esquerda em Portugal, mesmo que amalgamá-la seja injusto (Mário Soares jamais se aliaria com o PCP para governar), defende os seus.

Não seria má ideia ter isso presente, começando por não pôr Otelo no altar do excesso do equilíbrio e da compreensão: o santo é de pau carunchoso, a igreja é a da esquerda, alguns dos clérigos que vão ao púlpito são terroristas que circulam com naturalidade no meio das pessoas e os fiéis de outras obediências são apenas tolerados: nós.

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