Os revisionistas da literatura
jpt, 01.03.23
Está na berra a aparente patetice (que será, mais do que tudo, uma estratégia comercial muito mariola) de "expurgar" os livros infantis de Roald Dahl dos termos malévolos (entendidos como "discriminatórios"). Esta deriva nem sequer é original - já há anos muitos apareciam a querer mudar os textos de Mark Twain, exactamente pelas mesmas razões... E não só. E isto vai tanto assim, até por cá, que mesmo o Prof. Louçã - antigo coordenador do correctismo político nacional - veio a terreiro dizer que assim também é demais...
Esta fúria purificadora fez-me lembrar coisas de há duas décadas, na alvorada dos blogs. Eu já vivia no estrangeiro há bastantes anos, e ia desconhecendo o país. Acima de tudo ia cândido quanto às pantominas reinantes e ignaro das nascentes - e bem pujantes, que eram ainda os inícios do bloco de esquerda -, estas que tanto floriram no bloguismo.
Ora uma das primeiras febres do tal "correctismo" que encontrei, até surpreendendo-me, foi o fel vertido contra a "Anita" (colecção infantil que agora é publicada sob o nome original "Martine"), essa que não só lera quando petiz como me preparava para entregar à minha filha, então com 2/3 anos. Para aquela pobre gente a "Anita" era um poderoso instrumento de inculcação do poder machista e outras atrozes malevolências.
Vinte anos depois, continuo na minha. Este "correctismo" pode parecer uma mera patetice. Mas é uma vilania, ela sim perversa, no afã de encontrar o demo na literatura infantil ou de tentar arrancá-lo da literatura adulta (local onde ele deve estar presente, e de todas as maneiras possíveis e imagináveis). Mas os "correctistas" ("revisionistas", melhor dizendo) andam por aí...
No fundo, ver a "Anita" como alfobre de oprimidas de género é o mesmo que considerar a Miss Marple como cântico à prescrição da virgindade ou Poirot como a malvada ridicularização da emasculação. Ou mesmo os "Cinco" de Enid Blyton como fábrica de lesbianismo.
Enfim, naquela época botei um postal, crónica até assustada após ter oferecido à Carolina o seu primeiro livro da "Anita" - ela depois não veio a aderir a esta colecção, preferindo (e que me perdoe a indiscrição) desde muito cedo tornar-se visualizadora/leitora de Astérix, Calvin & Hobbes e Mafalda. Reproduzo-o agora, acima de tudo com saudades de poder oferecer a "Anita" à minha filha:
Este Natal ofereci à minha mais-que-tudo a sua primeira Anita, "No Jardim Zoológico", ainda que ela mal fale (disse hoje "abião"). Primeiro (egoísta) pus-me a ler, e a reviver as maravilhosas recordações daquelas cores, das ilustrações, e de quem me lia tudo aquilo, me encantava (e me dava sumo de groselha). Segundo (papá) deliciei-me a mostrar todos os animais do Zoo, "o Gato" (é leão, mas há gato em casa), "a Girafa", "o Urso", "a Zebra", e os outros, e a animar todos eles com os bonecos correspondentes que por cá abundam - e a miúda a apontar um homem gordo diante de uma jaula, e a gritar feliz "papá, papá!!" e o meu ego, enfim, o meu ego coitado... Terceiro (motorista) pus o carro na revisão, para irmos rápido ao Kruger avivar os bichos todos.
Mas, passo atrás, volto ao Natal. Ao comprar-lhe o livro trouxe outro, o extraordinário "Anita no Circo", para ofertar à filha de três anos de um casal aqui expatriado que viria partilhar a ceia. Chegada a hora dos presentes e os pais da miúda um bocado engasgados, até desagradados "ah, nunca lemos isso", e a mãe quasi entre-dentes a dizer que já os seus pais achavam aquilo muito reaccionário (e isto há mais de trinta anos), e portanto nunca tal tinha entrado em sua casa. E eu meio-aflito, mais valia ter estado quieto, que não me quero meter na educação de cria alheia. Enfim, foram gentis e à saída lá levaram a peçonha sexista e fascista para casa, não sei que destino lhe deram.
"Pronto, paciência, o que vale é a intenção", ecoava-me a mãe da minha, a acalmar-me os resmungos enquanto levantávamos a mesa da janta, eu para ali num "ele há cada um, é só malucos, que paranóias...". Realmente que triste gente é esta que consegue desgostar da Anita por causa de uns pinduricalhos que lhes meteram na cabeça.
Hoje estou a ver blogs, alguns que nem conhecia, e dou de caras com quem deteste a Anita, gente hirsuta a protestar com os tais estereótipos, e ainda com um desbragado a defender a dita, com uma acidez que corrói a própria Anita. Não há dúvida: "estes romanos são loucos". Como se existissem coisas para miúdos, e das quais eles gostassem, que não tivessem, fossem, estereótipos. E como se valesse a pena tais protestos com estes feminismos serôdios, cegos ao ridículo e eles-próprios os maiores reprodutores de clichés, por puro fastio, diga-se.
Lembro-me a chatear os meus (óptimos) pais, a querer pistolas. E eles fiéis ao "não dar armas às crianças". E a desistirem, talvez já fartos da minha insistência, talvez por terem percebido que combatia eu com armas emprestadas e a melancolia que isso me causava. A alegria que eu tive com a minha pistola de fulminantes! Ah, e a minha bisnaga vira-bicos, ainda hoje me aviva lembrá-la. Tais experiências seguindo as luminárias ditas de "esquerda" ter-me-iam tornado um assassino em série ou, pelo menos, um militarista exarcebado. Mas não, apenas me tornaram cansável face a estas ininteligências disfarçadas de hermeneutas.
[E falta-me o tempo para aqui lembrar todas as maravilhas da Enid Blyton, Salgari, Os Pequenos Vagabundos, Verne, Karl May, etcs., já para não falar nesse terrível "brincar aos médicos" - mas que gente infeliz...]
*Adenda: os blogs que estavam ligados neste texto (furibundos anti-Anita, furibundos pró-Anita) desapareceram, pelo que retirei as agora inúteis ligações.