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Delito de Opinião

Os psicopatas americanos no Congresso

João Pedro Pimenta, 09.01.22

American Psycho, ou Psicopata Americano, é um romance, chamemos-lhe assim, escrito no início dos anos noventa por Bret Easton Ellis que retrata de forma crua, amoralmente ostensiva e exaustivamente descritiva a idade de ouro dos yuppies na segunda metade dos anos oitenta, no pré-crash de 1987. A narrativa centra-se no modo de vida de Patrick Bateman, um financeiro de Wall Street com menos de trinta anos, de início mais nas suas obsessões materiais - a casa, a decoração, os aparelhos de alta fidelidade, os produtos de beleza e de higiene, o culto do corpo, os fatos, as gravatas, os restaurantes de luxo, as drogas, as amantes e as prostitutas - e mais à frente na sua faceta (ainda) mais negra que justifica o título da obra, tudo entrecortado pelas detalhadas críticas musicais dos músicos favoritos da personagem, que surgem como curiosa Hybris normalmente em situações inesperadas.  

O livro, já de si um sucesso comercial e de crítica, foi adaptado ao grande ecrã em 2000, com Christian Bale a compor um impressivo Bateman num desempenho que projectou a sua carreira. Como já se percebeu, o protagonista espelha uma ganância e uma obsessão materialista tais (de que é exemplo o seu acesso de fúria só porque os correligionários têm cartões de apresentação mais caros e polidos que os dele, o que terá consequências funestas) que é capaz de transformar Gordon Gekko, outra personagem fictícia deste peculiar mundo dos yuppies, num voluntário caridoso. É claro que nem todas as partes das descrições torrenciais de Ellis puderam ser transpostas para o filme, mas o essencial manteve-se.

Uma das alusões na obra a figuras reais, mais presente no livro que na película, é o culto do peculiar universo que rodeia Bateman pelos bilionários ostensivos, em geral, mas com uma especial admiração: Donald Trump. Sim, Trump e as festas que ele dá, os locais que frequenta e os seus carros. Trump é o modelo, a bússola e farol, aquilo que esta mole de gente endinheirada, entediada e amoral pretende ser.

Recordei-me de novo do livro/filme e das suas alusões a propósito do primeiro aniversário da invasão do Capitólio por aquela horda estranhíssima e alucinada, que deixou como resultado cinco mortos e uma imagem de ultraje e vergonha à democracia americana, mais própria de um país do interior de África. Tinham vindo de vários pontos dos Estados Unidos, numa das alturas mais gélidas do ano, para ouvir o discurso de Trump em frente ao congresso. Um discurso aliás de acusação e de incitamento directo contra a câmara legislativa, na senda da não aceitação do resultado das eleições de dois meses antes e das alusões a supostas fraudes. As palavras eram demasiado explícitas para que não se possa ligá-las ao que sucedeu a seguir. Aliás, até parecia que alguns adoradores trumpistas, mesmo deste lado do Atlântico, já o estavam a pressentir, referindo-se a "demonstrações do triunfo do "America First" que iriam surgir em Washington. Até tinham razão, como se viu.

Trump flutua entre um instinto político eficaz e uma mitomania que se torna pública muitas vezes. Era sem dúvida este último sentimento que o dominava naquele dia. Provavelmente, no embalo daquele discurso a meio caminho entre um ditador sul-americano e o general Custer lançando ordens contra os índios, não previu que as consequências pudessem ser tão funestas. Mas foram (por pouco não o foram para o próprio Mike Pence) e são indissociáveis do seu discurso de raiva que levou aquela mole desvairada habituada a "informar-se" no Qanon a cometer um acto tão grotesco.


O contraste entre esta gente e a retratada em American Psycho é gritante, a começar pela forma de trajar e a acabar na capacidade económica. As respectivas mundividências também são abissalmente diferentes. O que as une é a admiração e a confiança quase ilimitada em Trump, embora por razões diversas. Mas é bem mais compreensível vinda dos segundos, já que Trump é ele próprio um símbolo do materialismo (e de muito exibicionismo, como se observa na sua Trump Tower e no seu avião, por exemplo) e da ganância de um lado mais perverso do "sonho americano", além de ser nova-iorquino e de ter vivido quase sempre na Big Apple. Já da parte dos invasores do Capitólio é bem menos lógico, pois falamos de gente mais proveniente do Midwest e do Deep South, menos cosmopolita e mais susceptível a propaganda e com muito menos poder económico. Trump e a fauna de Wall Street estão a anos-luz desta massa de proletários sem rumo, em muitos casos desprezando-os até, e são o oposto aos princípio cristãos (com uma interpretação muito própria do cristianismo, é certo, muito WASP) e aos modelos de família por eles defendidos.

Em suma, Patrick Bateman admira Trump não só pelas suas posses mas sobretudo por não olhar a meios para atingir os seus fins e por possuir um ego do tamanho do mundo - pela fortuna, antes de mais, e depois pelo poder político - o que o faz sentir-se quase uma divindade omnipotente perante os outros seres que o rodeiam. Combina o dinheiro, o poder e o sexo, a avaliar pelas suas bravatas. Aquela frase de que "podia dar um tiro a alguém na Quinta Avenida que não perdia um voto" seria certamente do agrado de Bateman e poderia perfeitamente ser dita por ele. Ao criar a personagem, Ellis pôs muito de Trump nela, embora não pudesse prever que uma tal levaria à invasão do Capitólio. Com a diferença de que Patrick sabe certamente muito mais de música popular contemporânea do que Donald.

8 comentários

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    João Pedro Pimenta 10.01.2022

    Caro Vento, desde o séc. XVI que existe o protestantismo, e que certamente não concordaria consigo. Os seus dois parágrafos conflituam bastante. Fala da acumulação de riquezas como uma característica judia e depois elogia Trump por estar a especular com uma coisa que nem sequer existe. Se bem que "bezerro de ouro" fosse bem aplicável pelos seus adoradores, como o texto que escrevi bem o demonstra. Até a cor do cabelo ajuda. Vê alguma centelha de valores cristãos em Trump?
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    Vento 10.01.2022

    A única riqueza que incomoda os protestantes desde o século XVI e a que pertence à ICAR, a deles é considerada sagrada: tal como para judeus do judaísmo.

    Não entendeu obre o bezerro de ouro. Trump não especulou, investiu e angariou 1.1bi. Os mercadores do mercado é que aproveitam a onda para ganhar com algo que ainda não começou.
    Sim, em Trump vejo valor cristão. O mesmo valor que qualquer cristão tem para ser digno de justificação. Atire a primeira pedra se estiver isento. Trump é um grande gajo, até gosta de mulheres.
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    João Pedro Pimenta 11.01.2022

    Claro que percebi. Mas involuntariamente trouxe a figura do Bezerro de Ouro à liça, que se pode perfeitamente enquadrar na de Trump e na sua idolatria pelas massas alt right e pela amoralidade materialista de Wall Street. E sim, Trump especulou e sua fortuna não teve um percurso linear. Ele atirou bastantes pedras bem antes de mim e continua a atirar, sempre com o seu ego inflado. A tal rede social que ele montou é aliás sinal disso. Não há ponta de valores cristãos ali.
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    Vento 11.01.2022

    Wall street é tão amoral e imoral quanto os ditos gestores e outros mais que pululam por esta nação, até mesmo para se alimentarem de ordenados mínimos que a outros atribuem.
    A right e a alt right são iguais desde que a bufunfa fique allright, a única variante é de ortografia: alright.
    A rede que Trump monta é para desmontar essa right bidesca, a de Biden, e neofascista que se instalou no mundo e na América, que é apoiada e controlada pelos facebooks, istagrams e tantos mais.
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    João Pedro Pimenta 11.01.2022

    Claro, quando não é do agrado "desmontam-se" coisas que antes se usaram para chegar mais alto. Uma liberdade do melhor. Nada como um Telegramezinho ou uma qualquer Truth social, que esse não é nada fascista e deve transmitir valores que alguns, misteriosamente, consideram "cristãos", como enriquecer fugindo aos impostos, ostentar dinheiro a rodos, usar subterfúgios para ganhar eleições e dizer que o branco é preto e vice-versa.
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    Vento 12.01.2022

    Eu nunca usei e não uso facebooks ou instagrams ou qualquer outra coisita para chegar mais alto. Do alto já eu sou.
    O telegram, que não uso, é bem melhor que os facebooks e outros, pelo menos vem de um país onde também existem machos, como Putin.
    Enriquecer fugindo aos impostos não é nada mau. Mau é enriquecer roubando, e roubando através de impostos. Nesta matéria os neofascistas alt right em Portugal até puseram o fisco a cobrar as portagens para uma empresa dita privada.
    Na qualidade de tipo que pretende preservar a raça e a cor da pele, não admito que se diga que um branco é preto e um preto é branco. Porém admito que quando está sol qualquer um deles possa provocar sombras descoloradas.
    Acredito que Trump seja mais da raça Indiana Jones que se bate contra os caçadores da arca perdida. De Biden já se pode dizer que "tudo o vento levou".
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    João Pedro Pimenta 12.01.2022

    Macho, fugir aos impostos não é mau, pretende preservar a raça e apele---O dicurso trumpista tour court.
    Ao menos tenha a decência de não invocar valores cristãos em vão, já que não tem a mesma quando vem chamar aos outros "neofascistas alt right" (afinal a alt right existe? Impressionante como em cada parágrafo diz uma coisa diferente). Tudo essa litania é absolutamente anti-cristã.
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