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Delito de Opinião

Os patriarcas (5)

Pedro Correia, 11.05.16

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 Manuel Alegre com os filhos Francisco, Joana e Afonso

 

Admiro pessoas que não cedem à tentação da renúncia nem andam na vida de braços cruzados. Admiro pessoas que se mantêm activas muito para além da data legal prevista para a reforma. Admiro pessoas que nunca se esquecem de que a cidadania, mais do que um direito, é um dever. E há muitas formas de exercê-la, como faz Manuel Alegre, que parece cada vez mais imune às inclemências do tempo. No ano passado legou-nos um dos seus melhores livros de poemas, Bairro Ocidental, que estabelece uma surpreendente rima interna com as suas primeiras obras, Praça da Canção e O Canto e as Armas. Há poucas semanas reuniu uma invulgar recolha de textos dispersos, atribuindo-lhes um título feliz: Uma Outra Memória. Li-o em dois dias, com o prazer de um leitor já antigo deste magnífico prosador que Alegre também é.

Ele não tem de pedir licença a ninguém para pensar como pensa. Nem molda o discurso ao sabor das modas: por isso gosta de pronunciar na sua voz bem timbrada a palavra pátria, que outros condenam ao ostracismo. Nem autoriza que os ignorantes de turno lhe imponham listas de consoantes prontas a mutilar como tábuas de uma nova lei: ele foi um dos  quatro deputados (em 230) que na Assembleia da República votaram contra a entrada em vigor do "acordo ortográfico”, rejeitado pela esmagadora maioria dos escritores portugueses. Nem necessita das funções de conselheiro de Estado, para as quais terá sido convidado e desconvidado com manifesta falta de cortesia: receber o Prémio Pessoa ou o Prémio Vida Literária da Sociedade Portuguesa de Autores são honrarias maiores. Tal como a certeza de saber que milhares de portugueses conhecem de cor os seus poemas, recitados ou cantados.

Também não necessitou do beneplácito de chefe algum para concorrer à Presidência da República fez agora dez anos, num longo e gratificante périplo pelo País que tive o gosto de acompanhar passo a passo como repórter. Ouvi-o falar largas dezenas de vezes: nunca o ouvi amesquinhar um adversário ou sequer tratá-lo com deselegância. A crítica, para dar provas de contundência, nunca necessita baixar de nível – ele, que é mestre das palavras, sabe isso melhor que ninguém. Leiam, neste seu mais recente livro, o tocante testemunho inédito sobre Mário Soares: não há ali uma palavra deslocada nem o menor vestígio de azedume. É um texto notável, a vários títulos. Também pelo pudor que revela na recusa em reabrir feridas porventura mal cicatrizadas.

Manuel Alegre tem um porte fidalgo e modos um pouco deslocados nesta época tão propícia aos sarrafeiros de turno, à esquerda e à direita. Além disso é alguém com biografia, o que parece dispensável neste tempo de celebridades-proveta, tão instantâneas como os pudins de pacote e com prazo de validade mais breve do que um iogurte.

Muito para lá das conjunturas políticas, quando estiverem extintas as fogueiras ateadas pelas paixões de circunstância, o autor de Senhora das Tempestades – um dos mais belos livros da poesia portuguesa do século XX – sobreviverá pela sua obra, que permanece inacabada.

Privilégio dele, privilégio nosso também.

 

Manuel Alegre, nascido a 12 de Maio de 1936, faz amanhã 80 anos.

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