Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Os passos de Passos não foram perdidos

José António Abreu, 02.10.15

1. Governo

Em Janeiro de 2013, estavam os sinais de retoma económica ainda escondidos pelas peculiaridades da quarta dimensão (o extra-Euclidiano «tempo» e a sua patusca componente «futuro), escrevi que, não obstante muitos defeitos – tinha imensos, já na altura –, achava este governo um dos melhores, se não o melhor, da Terceira República. Muitas coisas ocorreram desde então: os chumbos mais mediáticos do Tribunal Constitucional, as revisões para cima dos objectivos do défice, a crise da «irreversibilidade» de Paulo Portas, o início da descida da taxa de desemprego, o desvanecimento da tão-certa-quanto-maligna «espiral recessiva», o aumento sustentado das exportações, o saldo das contas externas positivo pela primeira vez em décadas, o fim do programa de assistência financeira sem necessidade de segundo resgate ou de programa cautelar, o escândalo dos Vistos Gold, a reforma do mapa judiciário, a confusão na abertura do ano lectivo de 2014, o colapso do Grupo Espírito Santo, o processo de privatização da TAP. Embora acomodando mais algumas discordâncias e desilusões, a minha opinião manteve-se. E gostaria hoje, a dois dias das eleições, de regressar a dois destes temas, que me parecem definir um traço fundamental no governo e, muito particularmente, em Pedro Passos Coelho: a crise provocada pela demissão de Paulo Portas e a falência do Grupo Espírito Santo.

 

2. Desilusão 

Como os políticos gostam de dizer, permitam-me começar por um enquadramento. Na sexta-feira imediatamente anterior às eleições de 2011, escrevi:

9. Gostei da clareza do programa do PSD, apesar de existirem pontos em que não me revejo e outros em que receio se vá demasiado longe no futuro. [...] Desconfio de muitas pessoas que rodeiam Passos Coelho e detesto os aparelhistas e os caciques do partido. Não gosto da falta de clareza que o CDS manteve durante a campanha em relação a vários assuntos delicados, incluindo possíveis cenários de coligação. Considero que nos últimos anos fez uma oposição mais coerente do que do que a do PSD e prefiro, apesar de tudo, a equipa que rodeia Portas, por inexperiente que seja – ou talvez por causa disso.

10. Os próximos anos vão ser muito, muito difíceis.

11. Até domingo decidirei em que partido voto.

Votei CDS. Arrependi-me, acima de tudo por causa das tentativas que Paulo Portas foi fazendo para se dissociar – e dissociar o CDS – das medidas mais impopulares que o governo aplicava. Mesmo gostando pouco de organizações pejadas de gente com mais interesses do que convicções (como são todos os grandes partidos), se PSD e CDS concorressem separados às eleições do próximo domingo, o CDS perderia o meu voto e PSD ganhá-lo-ia.

 

3. Surpresa

Portas pode ter frustrado as minhas expectativas (reconheço-lhe, não obstante, uma capacidade de trabalho notável, que ajudou aos bons resultados das exportações) mas Passos ultrapassou-as – largamente. Contra uma esquerda radical ululante, contra um PS populista que sempre recusou assumir responsabilidades na situação a que o país chegara e colaborar nas medidas para o tirar dela, contra os «barões» do PSD, muitos dos quais afirmando o contrário do que antes haviam defendido, contra uma miríade de comentadores e «especialistas», contra sectores do Estado gordos, ineficientes e pouco habituados a constrangimentos, contra grupos económicos muito habituados aos negócios provenientes do Estado, contra quase toda a comunicação social, de maneira serena e sem autoritarismos (nunca ninguém teve razões para lhe chamar «animal feroz»), Passos aguentou o barco durante quatro anos e meio. Cometeu erros mas soube ultrapassá-los, aguentando firme ou recuando quando se tornou evidente que a alternativa seria pior – para ele, claro, mas também para o país.

 

4. «Não» a Portas

Quiçá por, em 2011, ter derrotado um Sócrates tão combativo, manipulador e histriónico como sempre mas bastante debilitado pelo falhanço clamoroso do rumo que insistira em seguir, muita gente continuou a subestimar as capacidades políticas de Passos Coelho até aos dias que se seguiram à demissão de Paulo Portas, no Verão de 2013. Nesses dias, ele mostrou que – não obstante o virulento cepticismo dos «pais» da República – era afinal um político de primeira. Nesses dias, fez algo que – admito – não julguei possível: manter o governo em funções, forçar Portas a reconsiderar, usando para isso o próprio CDS, e, na sequência dos esforços de Cavaco Silva para arranjar uma solução que envolvesse os socialistas, manter inteligentemente disponibilidade para negociar, ciente de que António José Seguro estava manietado por radicais que não aceitariam – como ainda não aceitam – compromissos. (Os quais – oh, ironias – lhes teriam dado em 2014 o que talvez não venham a conseguir em 2015.) Mais: partiu desse momento crítico para deixar de lado animosidades pessoais e criar uma melhor relação com Portas, bem visível durante a presente campanha. (Passos aproveitou a fraqueza de Portas, que ficara sem margem para novos erros, mas obviamente – até porque estas coisas são mais instintivas do que racionais – este terá parte do mérito na evolução que se constata.)

No Verão de 2013, nasceu outro Passos: o político que ninguém pode subestimar. Algo que os resultados das sondagens vêm confirmando, para surpresa e irritação de quase todos os socialistas, dos «barões» do PSD e de muito comentadores.

 

5. «Não» a Salgado

Se a crise provocada pela demissão de Portas revelou o político, o colapso do GES confirmou que Passos tem uma visão para a Economia. Ao longo destes quatro anos, teve de implementar muitas medidas que certamente lhe desagradam, começando pelos vários aumentos de impostos. Mas nunca tergiversou num ponto: a Economia desenvolve-se à base da iniciativa privada; esta deve funcionar em concorrência e assumir os riscos decorrentes da má gestão.

É ponto assente que o Banco de Portugal foi demasiado suave para com Ricardo Salgado durante demasiado tempo. O governo não. No período democrático (i.e., Terceira República excluindo PREC), nenhum antecessor de Passos teria recusado salvar Ricardo Salgado. Como – estou absolutamente convencido disto – não o teria recusado António Costa, se fosse primeiro-ministro. Há dias, no programa Conversas Cruzadas, da Rádio Renascença, Daniel Bessa (ex-ministro socialista) e Álvaro Santos Almeida (professor de Economia na Universidade do Porto) foram tão claros sobre o assunto que apenas me resta citá-los:

Daniel Bessa (1): Não tenho nenhuma dúvida de que o acto fundador – para o melhor e para o pior com todas as consequências que aí estão – partiu de Passos Coelho e Maria Luís que disseram ‘não’ ao Dr. Ricardo Salgado.

Daniel Bessa (2): Um ‘não' proferido quando o Dr. Ricardo Salgado lá foi e não foi sozinho. Até conheço quem o acompanhou nessa diligência, mas não vou dizer. Até não foram só dois, mas saíram de lá com uma ‘nega’ redonda. O regime caiu aí.

Álvaro Santos Almeida: Se não fosse por mais nada este governo teria valido a pena só por esta decisão.

É cedo para aferir os custos decorrentes do colapso do Grupo Espírito Santo e, ainda que se perceba a intenção subjacente (não permitir impactos no défice), terá sido um erro tentar vender o Novo Banco à pressa. Seja como for, até prova em contrário, a resolução foi a escolha com menos inconvenientes. Mas nem é tanto isso que aqui me interessa. Interessa-me a posição de Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque diante do dono disto tudo, absolutamente extraordinária num país onde o cruzamento de interesses entre o Estado e os principais grupos económicos tem imperado, com custos enormes para o bem-estar geral.

 

6. Do passado ao futuro

Critiquei-o várias vezes. Em Março de 2010, num texto intitulado Os passos de Passos não serão perdidos (no qual - de vez em quando sou ainda melhor do que julgo ser - previ que se realizariam eleições em Junho de 2011), cheguei a admitir preferir Paulo Rangel para líder do PSD. Desconfio que, numa perspectiva de imagem para o futuro, seria melhor para Passos perder tangencialmente no próximo domingo. Dentro de vinte ou trinta anos, o seu nome estaria associado ao salvamento (provavelmente temporário) do país; à criação de uma (provavelmente desperdiçada) oportunidade. Vencendo sem maioria absoluta, enfrentará (mais) um período turbulento, o qual, dependendo da versão do Partido Socialista que sair das eleições, pode acabar mal. Mesmo com uma improvável maioria absoluta, está por demonstrar que é possível fazer crescer este país de forma saudável sem a presença de uma forte tutela externa, tão numerosos e poderosos são os interesses instalados (veja-se como o governo, que até se comportou razoavelmente para ano eleitoral, acaba de ceder aos enfermeiros). E ainda há os riscos externos: tirando Centeno e Galamba, alguém acredita que a Economia mundial escapará a um novo solavanco - passe o eufemismo – durante os próximos quatro anos? Seja como for, levando em conta as alternativas, ainda bem que Passos Coelho está na corrida. Se em grande medida o meu voto no próximo domingo configura a recusa de males maiores (a democracia é o jogo do possível; as utopias acabam mal), em parte serve também como reconhecimento do trabalho desenvolvido e (por vezes convém suspender o cinismo e, ainda que sem entusiasmos excessivos, apostar em alguma coisa) sinal de esperança no trabalho a desenvolver pelo homem mais contestado de Portugal.

26 comentários

Comentar post