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Delito de Opinião

Os Olivais e o Futuro

jpt, 14.04.25

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1. Nos Olivais (Sul) está a casa dita Palácio do Contador-Mor - título que era uma espécie de Ministro das Finanças, passe o anacronismo da analogia. Foi mandada construir por um Van-Zeller - e ainda mantém o seu escudo de armas - descendente do primeiro deles por cá: um embaixador prussiano  que em 1746 recebeu o cargo, assim um verdadeiro Conde de Lippe do erário público (uma "troika" de então?), o qual ficou na posse da família até à sua extinção (um FMI perene?). A lenda local di-la, até, a "Casa dos Maias" - os "Olivaes" queirozianos - fazendo por esquecer que aquilo era ficção.

Cresci na vizinhança. Durante a minha meninice, adolescência e jovem adultice, a casa estava semi-abandonada, entregue a uma associação popular que ali explorava uma taberna bem rústica (ou "centro social", se assim se quiser chamar), e se animava com umas festarolas episódicas. Os jardins estavam silvestres e nacos do edifício arruinavam-se. Eram usados pela rapaziada para ocasionais namoros, muito frequentes charros e mais ou menos episódicos "caldos".

Nos anos 90s, a Câmara restaurou o edifício e ali instalou a BDteca, um "must" então. Estive, "penetra", na inauguração. E ainda lembro o vibrante discurso de João Soares, o presidente de então, em veemente apologia da banda desenhada - algo não tão habitual entre a literatazinha intelligentsia portuguesa. E até invocando o combatente anti-fascista e "valente ribatejano" "Major James Eduardo de Cook e Alvega" - de facto, o Battler Britton, mas que nós, seus eternos admiradores continuamos e continuaremos a naturalizar, nisso fazendo-o "nosso". A BDteca foi deixada à direcção do João Paulo Cotrim, boa escolha pois homem da bdfilia, empenhado e sagaz. 

Emigrei, e nos anos subsequentes pouco fui sabendo da casa. Constou-me que o sucessor camarário Santana Lopes nela desinvestira, até mesmo a afrontara, se aversão à nona arte se coisas lá das "capelinhas" partidárias não sei: o Cotrim partiu para as suas andanças, mas aquilo foi resistindo, em boas mãos funcionárias. Depois perdeu a sua identidade especializada, "desviada" para mera biblioteca da câmara. Quando voltei em 2015 encontrei-a arrumada e funcional: um serviço de internet gratuito, então algo precioso, pois a "nuvem" era ainda menos vigente; um simpático espaço de leitura de periódicos, estes cada vez mais escassos, por razões do rumo da imprensa; um acervo aceitável mas muito valorizado pela sua inserção na rede de bibliotecas públicas, assim potenciando o acesso bibliográfico aos bastantes leitores; um afável corpo de funcionários. A velha "bdteca" fora reduzida a uma secção - entregue a um diligente responsável, um saudável "nerd" da BD, ele próprio editor, e resistente: todas as semanas, num expositor em literal vão de escada, apresentava uma nova pequena exposição temática, de facto uma demonstração do "estamos aqui". Mas o seu fundo estava muito desactualizado, empobrecido - e desconfio que muitas das parcas novidades seriam até dádivas que receberia ele da solidária rede de editoras dedicadas.

Entretanto a biblioteca fora despromovida, pois a câmara entregara-a à junta de freguesia, coisas de rearranjos legislativos, disparatados. Implicava isso menores recursos humanos, desprovimento de técnicos superiores, de direcção. De rumo. Uma ausência óbvia. Situada no verdadeiro centro da freguesia, ladeando a Quinta Pedagógica (o ponto mais visitado do bairro), defronte a uma igreja e ao centro comercial (uma desmesurada patada urbanística inflaccionada durante o boçalismo cavaquista), rodeada de escolas, básicas e secundárias, com metropolitano à porta, entre uma fiada de cafés de bairro e restaurantes, seria natural que fosse um pólo de actividades culturais. Nada disso, apenas um quiosque preguiçoso e um vazio sem rebuliço, num primado do "cinzentismo".

Em 2020 veio a era confinada, entremeada com os episódios ditos de "postigo". O que abrangeu, como foi curial, a biblioteca. Depois, em 2021, ela foi encerrada para obras. O tempo foi passando. E  muito. Como todos os dias por lá passo, rumo "à bica", fui observando a diminuta azáfama, para não dizer mais... Indaguei junto de antigos funcionários transeuntes sobre o que se passava. Com contenção lá me foram dizendo o que não posso afiançar: que as obras não são estruturais, que haviam sido cabimentadas duas vezes - da primeira vez algo desviante acontecera, tendo depois a Câmara exigido a sua realização; que a adjudicação fora - evidentemente - incompetente; que a equipa da Junta não sabia o que fazer da biblioteca, por isso não se preocupara. Etc. Em finais de 2023 nas redes sociais a presidente da Junta anunciava, em louvores à responsável da "cultura" da sua equipa, cidadã que exerce sob nome artístico e cabelo azul, que a abertura estava iminente. No Verão de 2024 voltei a cruzar um funcionário, perguntei-lhe sobre a data prevista de reabertura. Deu-me um sorriso, mesclando desdém e descrença. E anunciou: "diz-se que estará pronta em Outubro, alguns dizem que será reaberta em Janeiro. Mas acredito que esperarão pela campanha das eleições para a... pompa e cerimónia".

Contrariamente ao seu pai, a minha filha gosta de estudar em sítios públicos, ajuda-a a concentrar-se, nisso negando o "Tal Pai, Tal Filha...": em grupo, em cafés, em bibliotecas, etc. Quando vinha a Portugal e a (esta) casa, logo demandava locais para isso, junto aos amigos. Entrou na universidade em 2019, cursou a licenciatura, fez um mestrado, depois outro. E dizia-me há meses, "pai, vou acabar os estudos e nunca pude estudar na biblioteca" (que está diante de nossa casa, entenda-se). E assim foi, ela já partida para o primeiro emprego. Num sítio onde há… bibliotecas.

Em suma, de seguida ao império do Covid vieram, pelo menos, 3 anos e meio de encerramento da biblioteca dos Olivais. Devido a obras menores. Agora para lá andaram a colocar um elevador externo, coisa de que se ouve falar há... anos. E murmura-se que o futuro responsável contratado será um ... cônjuge de candidata eleita, rumor que não posso confirmar. A qual, com evidente desplante, se recandidatará. Isto tudo em Lisboa, no centro da capital do país, terceira década de XXI, numa freguesia com 32 000 eleitores!

2. Há dias, no tapete rolante do metropolitano cruzei um colega mais-velho, o qual ainda me dera algumas aulas no mestrado. Lá fez ele meia-volta para o abraço real que se impunha, não o via desde uma das suas últimas sessões lectivas a que eu fora assistir, forma de homenagem, há já quase uma década!... Combinámos um almoço. E veio ele - aos 80 anos está numa espantosa boa forma física e intelectual, mais expedito do que eu - aos Olivais. Abancámos no "Cabeça do Touro", falámos que nos fartámos. De assuntos e de gentes... Ele gabou o aspecto do bairro, do qual não é visitante frequente. Eu discorri sobre algumas mudanças sociológicas existentes, que o rejuvenescem. E resmunguei sobre a incapacidade de induzir melhorias na vida "social". Às tantas, entre o labirinto de pessoas que evocávamos, falou ele do Aventino Teixeira (quem é que o "Coronel" - como sempre fiz questão de o tratar...- não conhecia?).

Tínhamos estado a falar da falta de "memória" dos universitários - eu já discorrera a minha irritação com a forma preguiçosa como os antropólogos tinham referido a morte do Rui Mateus Pereira, seu querido amigo (demorar dois anos e meio para publicar uns textinhos numa das revistas da especialidade?, que gente...). E mais ainda com a ausência de homenagem textual condigna ao grande Armando Trigo de Abreu, também seu amigo, meu excelso professor: um homem de percurso político rico, que foi fundamental no sempre elogiado "momento" Mariano Gago da "Ciência e Tecnologia" nacional, e verdadeiramente estruturante no desenvolvimento da área "Estudos Africanos" no país (e sobre o qual deixei breve e muito superficial texto aquando da sua morte). Ao que, sobre "o Armando" - como eu nunca o tratei -, e comigo imensamente concordante, me respondeu que no "Instituto" não o homenagearam porque "nunca fez o doutoramento", e assim menosprezando um percurso imensamente rico e diversificado. Que gente!

Mas isto que digo não é lateral! Porque prende-se com o uso da "memória", e como ela é cultura activa e vida social. Pois falando ele do Aventino - e até porque há pouco uma das suas filhas me lembrou terem já passado 16 anos desde a sua morte! - lhe disse "vamos beber um café ao Tosta", um pouco abaixo do restaurante onde estávamos. Lá chegados disse-lhe ser aquele o prédio onde o Aventino Teixeira vivera, tal como no prédio defronte vivera o general Soares Carneiro, e a 150 metros vivera até à morte o Álvaro Cunhal. São meros exemplos, entre a imensidão de pessoas que vieram morar desde os anos 1960 para os Olivais. O colega mais-velho, que até "é" (julgo) do PS, concordando com o meu resmungo: "há anos que andam a celebrar "Abril" e esta Junta que faz?". Pois só a propósito destes três prédios o que se poderia ter feito, as gentes que se poderiam ter convidado, as actividades dedicadas? As interacções com centros de dia, com as associações da cidade, as actividades nas escolas... Já para não falar na animação (imediata e diferida) do comércio local.

Nada disso, apenas a ignorância eleita. Um jardim "Zé Pedro" inaugurado ainda incompleto - e o que me irritei com o Moedas (de quem gosto) a aparecer naquilo. Uma biblioteca fechada há anos... E umas "animações" populares ocasionais, ao Vale e Silêncio e Encarnação, músicas e comes-e-bebes. Nada contra... mas nada suficiente.

3. Desde que voltei aos Olivais que debito em blog uns resmungos sobre a péssima junta de freguesia. É evidente que, se vendo isto em termos nacionais, todos estes assuntos parecem minudências, irrelevantes. Mas a vida é feita disto, nas vizinhanças, entre "fregueses".

Aqui vem reinando a incompetência (até iletrada), um atrevidíssimo populismo (a presidente da Junta é um arquétipo, mesmo). E um clientelismo mascarado de (assim pérfido) "assistencialismo". O qual vem sendo afixado pela imprensa, em reportagens que noutros contextos seriam letais para os eleitos - mas, como se sabe, é muito difícil apear os poderes das "concelhias" do PS (e, também, do PSD) nas grandes cidades.

Para quem torce o nariz a estes protestos - "lá está ele a dizer mal do PS", "ainda por cima em período eleitoral..." - lembro que o PS ganha aqui desde 1989!, que a presidente actual secundava o anterior - um "dinossauro autárquico", com 5 mandatos consecutivos - e chega agora ao limite de mandatos. Trata-se de uma verdadeira dinastia. 

Em reportagens televisivas do ano passado, não só se arrolavam os desmandos clientelares na equipa da Junta - como concessões favorecidas, empregos para familiares (ao que consta tem um rol de funcionários muito superior aos das suas congéneres), ineficiências (basta falar com professores das escolas locais para as ouvir). Mas isso chegava mais longe, ao pungente, a um miserabilismo: uma eleita que desvia doses de sopa distribuídas nas escolas para sua casa ("hoje são mais porque tenho visitas", ou coisa assim, ouvia-se nas chamadas...). É um baixo nível até tétrico.

Entretanto "as comadres" do PS local zangaram-se: parte, da "facção" da actual presidente, avançou para uma lista independente, à qual a (agora) "concelhia" do partido "retirou" confiança política. E a outra "facção", do seu vice, actual encarregado, avançará nas listas "oficiais", como se nada disto, desta forma de fazer política autárquica, seja com eles...

Nas últimas duas eleições, que acompanhei, o PS vem perdendo votos (grosso modo de 50% para 30%), uma perda só aqui superior à diferença de votos que permitiu a surpreendente vitória camarária de Moedas. As candidaturas do PSD aqui são sempre péssimas, uma iniquidade de vácuas. O velho PCP (no qual aqui cheguei a votar nos 80s, tempos do candidato Pimentel, presente lá bem no fundo do rol de suplentes) inexiste, nem sequer produz documentos sobre a freguesia (já não há "intelectuais orgânicos"). O BE diz umas festividades, o PAN preocupa-se com gatis (é verdade, não é ironia). 

Entretanto, agora a TVI voltou a referir a freguesia, mais uns desmandos clientelares desta Junta. "Coisa pequena", repetirão. Pois apenas as trapalhadas da concessão pela junta da exploração de um café em instalações municipais - a uma das eleitas, que agora se arroga a encabeçar uma lista  de candidatura. Basta ver a reportagem. Para se perceber quem é esta gente. Que há décadas aqui predomina.

Numa "sociedade aberta", com grandes partidos com um mínimo de compostura, isto seria o suficiente para uma limpeza de quadros, uma verdadeira desbaratização. Claro que não existirá. Ou seja, somos nós, fregueses, que temos de fazer alguma coisa. Nos Olivais.

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