Os objectos também morrem
Tal como as pessoas, os objectos organizam-se segundo categorias distintas, numa escala hierárquica, mas é quando se desfaz uma casa que os pormenores da sua existência se tornam mais evidentes. No topo estão os ícones, cuja personalidade fortíssima domina e define o espaço onde se instalaram. Na base amontoam-se os clips, os elásticos, lenços de papel, lupas, tesouras, isqueiros, molas da roupa, pilhas, pentes, uma tropa desordenada, de repente sem missão na Terra. "Alô, alô, daqui fala o esquadrão dos artigos de limpeza, aguardamos instruções, escuto".
Nunca o frasco da água oxigenada se imaginaria a acabar os seus dias ao lado de uma panela de pressão e no entanto essas coisas acontecem quando se apaga uma casa. Torres de babel de cordas, panos da loiça, secadores de cabelo, caixas de alfinetes e champôs crescem nos tampos das mesas. Os utensílios são os objectos mais estridentes. Gritam: "E agora? E agora? E agora?" Não admira, eram os que tinham os papéis mais definidos, circunscritos a uma geografia que na maioria dos casos não excedia os limites de uma divisão doméstica. Agora questionam-se aflitos, sob o olhar pesado da mobília.
Só quem nunca desmantelou uma casa esquece que cada objecto tem o seu passado. Já não é do meu tempo, mas tenho a certeza que aquelas contas começaram por ser um colar de várias voltas que passeou glamour por festas e jantares de família. Para mim, que as conheci já soltas, metidas naquela caixa transparente, foram pérolas verdadeiras, que eu primeiro espalhei e depois já com o meu escafandro imaginário colhi quando mergulhei a metros de profundidade no tapete de carpélio do quarto dos meus tios. Aqueles pêlos desgrenhados pareciam mesmo plantas marinhas a ondular no soalho daquele terceiro andar de Campolide com uma vista fabulosa para o aqueduto. "Teresinha, sai daí, não te debruces!"
Mas fazer o luto ao mesmo tempo que se trata de todas as questões práticas associadas ao fim de uma vida é tarefa de adultos. E enquanto escolhemos, guardamos, oferecemos, vendemos e profanamos coisas, a morte, a morte, a morte é a conversa intelectual e obsessiva dos objectos que nos cercam. Nós atarefados a tratar de intendências e eles, junto com as paredes, a zurzirem. É preciso, no entanto, que se lhes diga que isso de os objectos sobreviverem aos donos é pura ficção. É claro que também morrem. Morrem quando mudam de mãos, morrem quando vão para o lixo e até quando vão para reciclar. A diferença - tenho que lhes dizer na última vez que lá for - a diferença é que podem, se tiverem alma, morrer de várias vidas.