Os negacionistas bolsonarescos
Faz amanhã um ano: foi a primeira menção ao novo vírus que vinha da China registada no meu diário.
Revisito hoje essas linhas que escrevi em 29 de Janeiro de 2020:
«Epidemia de gripe, já conhecida como coronavírus, começou na China, onde já provocou dezenas de mortos, e vai alastrando para outro países.
A palavra CORONAVÍRUS, desconhecida até agora, incorpora-se no vocabulário comum.»
Tão simples como isto. Cinco linhas escritas num caderno sem imaginar como estava a começar o maior pesadelo da nossa vida colectiva.
Esse era um tempo em que ainda imperava em Portugal o negacionismo oficial, em que sucessivos responsáveis emitiam declarações boçais negando as evidências, em que abundava por cá o bolsonaresco «é só uma gripezinha». E havia até quem vislumbrasse na desgraça dos chineses uma despudorada oportunidade de negócio para os exportadores nacionais.
Foi um tempo em que Graça Freitas - então, como agora, responsável máxima da Direcção-Geral da Saúde - declarava: «A natureza é assim, aparecem novos vírus. (...) Não há grande probabilidade de chegar a Portugal: mesmo na China o surto foi contido.» Enquanto tranquilizava os compatriotas quanto à «fraquíssima possibilidade» de transmissão do vírus de pessoa para pessoa. «Neste momento não há nenhum motivo para alarme nem sequer para alerta», assegurava a directora-geral a 15 de Janeiro.
Foi um tempo em que Maria do Céu Albuquerque - então, como agora, ministra da Agricultura - apareceu com ar jubiloso perante os jornalistas dizendo acreditar que as exportações portuguesas poderiam beneficiar muito com a crise registada na China, numa altura em que o vírus já ali havia provocado pelo menos 500 mortos. O coronavírus «pode ter consequências bastante positivas» para o nosso sector agro-alimentar, declarou a ministra a 5 de Fevereiro.
Foi um tempo em que Jorge Torgal - então, como agora, porta-voz do Conselho Nacional de Saúde Pública e nessa qualidade um dos principais conselheiros da ministra que tutela o sector - declarava sem rodeios que o novo coronavírus era «menos perigoso do que o vírus da gripe». Palavras proferidas numa entrevista ao Jornal de Notícias a 28 de Fevereiro. Quando já havia 2800 mortos e 82 mil pessoas infectadas em mais de 40 países.
Era um tempo em que João Matos Fernandes - então, como agora, ministro do Ambiente - dedicava uma das habituais acções de propaganda do Governo a apregoar as virtudes higiénicas de um produto no metro de Lisboa com a graça e o garbo de um charlatão de feira. «Existe um produto muito eficaz, um produto que mata todos os micro-organismos e, portanto, bactérias e vírus, e que consegue durante um mês essa mesma segurança. Há uma película que é formada em torno das superfícies onde ele for aplicado», declarou o governante a 15 de Março, perante um batalhão de cordatos jornalistas.
Era um tempo em que António Costa - então, como agora, primeiro-ministro - nos tranquilizava garantindo solenemente que «até agora não faltou nada no SNS e não é previsível que venha a faltar nada». Palavras com data de 23 de Março, portanto muito antes da situação actual, em que o Governo já admite enviar doentes portugueses para hospitais estrangeiros.
Estas declarações - nuns casos vergonhosas, noutros simplesmente caricatas - foram pouco depois varridas para debaixo do tapete. Como se nunca tivessem existido. Mas existiram - e influenciaram muitos de nós nessas semanas iniciais. Todas procurando desvalorizar a tempestade que aí vinha. Por irresponsabilidade, ignorância ou estupidez.