Os melhores livros do meu ano (1)
É sempre assim. Chego a Dezembro e elaboro o meu balanço de livros e filmes. Neste ano de pesadelo, como muitos de nós classificamos 2020, os meus livros ganharam por larga vantagem aos meus filmes. Apesar do confinamento, ou talvez até por isso, apeteceu-me muito mais mergulhar na leitura do que assistir a filmes. Ler e cozinhar foram, aliás, os meus passatempos favoritos no ciclo de 12 meses que agora chega ao fim.
Os filmes foram ficando para trás. Sendo com frequência trocados também por séries, vistas ou revistas - dos clássicos Columbo e Uma Família às Direitas até ficções televisivas contemporâneas de inegável qualidade, como a intrigante Shetland, a devastadora Hinterland, a negra Absolvição, a sombria Linha Invisível, a desbragada Narcos, a tensa Os Crimes de Valhalla, a cáustica Barão Negro, a surpreendente Hierro, a empolgante Salvação, a imprescindível The Crown.
Pois desta vez os livros venceram por larga margem: 100-40. Uma goleada, como se diz em linguagem futeboleira. Refiro-me apenas aos livros lidos integralmente neste 2020 que nos virou a vida do avesso: os que abandonei a meio, fosse por que motivo fosse, não entram nesta contabillidade.
Durante três dias, começando hoje, deixarei aqui a lista dos dez melhores destes cem, multiplicada por três: a primeira, já de seguida, respeitante só a autores portugueses. Amanhã virão os autores estrangeiros. Depois de amanhã, recordo os dez que mais gostei de reler. Títulos sempre acompanhados por duas ou três frases sobre cada obra.
Cada lista fica por ordem alfabética. Podia ter sido outro o critério, mas prefiro este.
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A PAZ DOMÉSTICA, de Teresa Veiga (1999). Romance de estreia desta escritora avessa a protagonismo mediático, mais conhecida como contista. Relato sincopado do singular percurso de uma mulher ao longo de um quarto de século de convulsões políticas em Portugal, com drama e comédia entrelaçados.
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, de José Saramago (1995). Ponto culminante da literatura portuguesa de ficção em matéria de distopias. Lúcida descrição de um mundo sem fronteiras espaciais ou temporais convulsionado pela cegueira colectiva. De leitura quase obrigatória em tempo de pandemia.
GAIBÉUS, de Alves Redol (1939). O neo-realismo português entrava em cena neste romance, trocando as personagens individuais pelo protagonismo colectivo de humildes trabalhadores agrícolas das Beiras que desciam ao Ribatejo para ganhar a vida em tempo de ceifas e colheitas. Quase como escrita de repórter.
GAIVOTAS EM TERRA, de David Mourão-Ferreira (1959). Quatro novelas que marcaram a estreia em ficção deste grande poeta. À sua maneira, cada uma celebrando com nostalgia a Lisboa burguesa de meados do século XX. Duas delas originaram filmes, realizados por Jorge Brum do Canto e José Fonseca e Costa.
KURIKA, de Henrique Galvão (1944). Muitos ignoram que o futuro opositor de Salazar se distinguira antes como escritor, sobretudo de temática africana, como reflexo dos anos vividos em Angola. Este é um romance em que os animais surgem em surpreendente destaque, num contraponto português a Lassie ou Bambi.
QUANDO OS LOBOS UIVAM, de Aquilino Ribeiro (1958). Romance-libelo sobre a luta dos camponeses da Beira Alta pelo cultivo de baldios que valeu ao autor um processo judicial e a ameaça de prisão. Inesquecível, a longa cena desenrolada num Tribunal Plenário, com palavras desassombradas em desafio à ditadura.
SILÊNCIO PARA 4, de Ruben A. (1973). Quatro personagens em diálogo neste romance incompreendido à época. Obra imediatamente anterior à revolução, ganha em ser lida à distância de quase meio século. Por ser sinal evidente de um fim de ciclo: a mudança de costumes antecipava o vendaval político.
TERRA MORTA, de Castro Soromenho (1949). Houve um tempo em que a literatura portuguesa não se circunscrevia ao continente europeu. Entre o legado dos nossos escritores africanistas distingue-se este apaixonado e pungente retrato da gente e do espaço em zonas remotas de Angola na era colonial.
VIVER COM OS OUTROS, de Isabel da Nóbrega (1964). Um prodígio formal, este romance escrito da primeira à última linha num discurso directo que nunca soa a artifício. Na Lisboa privilegiada em que se anteviam os primeiros sinais de desagregação das classes sociais que funcionaram como âncora do Estado Novo.
VOLFRÂMIO, de Aquilino Ribeiro (1943). Romance escrito quase em tempo real, no auge da guerra, quando ingleses e alemães disputavam as riquezas minerais do interior português, aproveitando a nossa neutralidade no conflito. Com personagens credíveis e uma impressionante riqueza vocabular, marca distintiva do autor.